Saturday, October 08, 2005

A poesia de Leone sobre amizade e ambição

Era Uma Vez na América mostra com perfeição algumas complexidades do ser humano

Os críticos de cinema costumam conferir a aura de gênio ao diretor, ao metteur-em-scéne, aos poucos que conduzem, para além da mise-en-scéne, uma obra que crie mundos inesquecíveis nas mentes de seus públicos. E é interessante como realmente grandes filmes propiciam cenários e imagens únicas, de um mundo à parte, novo e original para os cinéfilos. Nessa relação entre originalidade e qualidade artística, cineastas como Stanley Kubrick, Federico Fellini, Sergei Eisenstein, Mário Peixoto e Glauber Rocha são alguns dos que foram artífices da criação de novas linguagens e estilos cinematográficos.

Sergio Leone, esse italiano conhecido como diretor/inventor do western spaghetti, produziu um cinema menos radical que alguns dos mestres das imagens, mas não deixou de legar um autoral trabalho poético para os amantes do cinema.

Em trabalhos como assistente de direção em Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sicca, co-dirigindo Os Últimos Dias de Pompéia, de Mario Bonardi e fazendo algumas cenas até de Ben Hur (incluída aí a co-direção na famosa corrida de bigas), logo na década de 60 teve aberta às portas da Cinecittà, estúdio italiano que marcou época. Porém, apenas em 1983, ele realizaria o projeto de sua vida, um filme pensado durante vinte anos. Era Uma Vez na América.A película era uma superprodução ítalo-americana que conta a história de cinco amigos poeticamente mafiosos na infância e violentamente criminosos na vida adulta.

Noodles, Max, Cockeye, Patsy e Dominique, cercados por Deborah e seu irmão Fat Moe, urdem pequenos delitos no bairro onde moram, o Lower East Side, no Brooklyn, em Manhattan. Passam de bando para um organizado grupo criminoso quando ganham fama entre mafiosos locais ao terem a idéia de transportar cargas trazidas pelo mar usando sal dentro de esferas, que, viriam à tona dentro das caixas mantendo a integridade dos produtos. A forma como o diretor mostra esse fato e toda a trajetória dos infantes é entrecortada por flashbacks geniais, constantes retornos no tempo, que ao contrário do que dizem algumas críticas, não passam confusão para um espectador mais atento.

O que existe é uma sucessiva manipulação do tempo narrativo que passa pelas décadas de 20, 30 e 60. Mas, ousadia não poderia ficar de fora de um projeto de vida de um obsessivo. Um apaixonado diretor que pretendeu abertamente - e em suas próprias palavras sobre o também clássico Era Uma Vez No Oeste - captar uma dança da morte, onde teríamos um filme em que sempre houvesse a impressão que nada acabaria bem e que a morte parecesse o sonolento cão de guarda dos personagens.A mesma ambição narrativa de Era Uma Vez na América, então, tinha sido empregada no famoso western, considerado por muitos o melhor filme de Leone.

Uma violência delirante, os silêncios fascinantes e a delicada tessitura dramática pontuam a saga dos meninos do bairro judeu dos anos 20, numa espécie de visão complementar da que Coppola deu com O Poderoso Chefão. Com a fotografia majestosa do amigo, sempre parceiro, Tonino Delli Colli e amparado na peça musical da dor que é a trilha de Ennio Morricone, amigo desde tempos de colégio, Leone proporciona uma das mais belas viagens do cinema.

Com ajuda fundamental de geniais e subestimadas atuações de atores como Robert de Niro, Joe Pesci e James Woods e também as atuações inspiradas de atores desconhecidos como Elizabeth McGovern, William Forsythe e Tuesday Weld, o diretor ainda consegue fazer milagres com o elenco infantil, que têm um desempenho profundo, como os de Scott Tiler (jovem Noodles), Jennifer Connelly (jovem Deborah) e Rusty Jacobs (Max).

O cinema pode ser mais cerebral como em Orson Welles e Sergei Eisenstein, mas também pode ser apenas mágico como nos filmes de Sergio Leone. Era Uma Vez na América mostra com perfeição algumas complexidades do ser humano, evidenciando o valor da amizade, a poesia que existem em destinos humanos, mesmo sendo eles tão marcados por dor, traição e ambição.

Era Uma Vez na América (Once Upon a Time in America/ ITA-EUA / 1983) Dir: Sergio Leone. Com: Robert De Niro, Joe Pesci, James Woods, Danny Aiello.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home