Tuesday, September 14, 2004

A Esfera Pública, por Habermas

A ESFERA PÚBLICA EM JÜRGEN HABERMAS
Nélson Traquina



INTRODUÇÃO

A questão da esfera pública em Jürgen Habermas é tema tão central que tem-se mantido presente em sua obra, ao longo de quatro décadas. Foi o objeto de um de seus primeiros livros, Mudança Estrutural da Esfera Pública, datado de 1962. Também foi exaustivamente analisado em Direito e Democracia: entre facticidade e validade, publicado em 1992. Atualmente, depois de tantas outras preocupações, ali permanece como foco de suas considerações, como se pode constatar numa de suas mais recentes publicações, A Constelação Pós-Nacional, lançada em 1998. Sendo assim, para podermos abordar esta temática tão ampla, teremos que progredir por partes, iniciando com a tentativa de definição e delimitação desse conceito em relação a outros, seguida de uma busca de suas origens e da evolução histórica de suas funções, desde a constituição da esfera pública burguesa até os dias presentes, tal como descrito por Habermas.
Para podermos, então, definir o que o autor entende por esse conceito, devemos, em primeiro lugar, levar em conta a distinção entre a esfera do poder público e a esfera da opinião pública. Temos aqui, portanto, a diferenciação entre o Estado, enquanto poder ou setor público, detentor da propriedade pública e do poder político (que se expressa no monopólio do uso da força) e responsável pela administração da sociedade; e a própria sociedade, constituída pelos interesses privados, no interior da qual se pode identificar uma esfera da opinião pública que se contrapõe ao poder público - a esfera pública política. O setor privado, portanto, abrange tanto o campo da sociedade civil, enquanto setor de troca de mercadorias e de trabalho social, quanto a esfera pública política, definida como "esfera de pessoas privadas reunidas num público; elas reivindicam esta esfera pública regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade, a fim de discutir com ela as leis gerais do intercâmbio de mercadorias e do trabalho social" (Habermas, 1984: 42).
É precisamente esta definição de um espaço público dentro do setor privado, que constitui a originalidade do conceito de esfera pública do autor, e faz com que, logo de imediato, se coloque a diferença de sua concepção de sociedade civil em relação a Hegel e à tradição liberal, que a concebia enquanto "sistema de necessidades" , e também em relação a Marx. "Hoje em dia, o termo sociedade civil não inclui mais a economia constituída através do direito privado e dirigida através do trabalho, do capital e dos mercados de bens, como ainda acontecia na época de Marx e do marxismo" (Habermas, 1997, vol. II: 99). Por ela, o autor entende o conjunto dos movimentos e organizações sociais que veiculam os conteúdos da opinião pública, a saber: “compõe-se de movimento, organizações e associações, os quais captam os ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas privadas, condensam-nos e os transmitem, a seguir, para a esfera pública política. O seu núcleo institucional é formado por associações e organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram as estruturas de comunicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida” (Ibidem: 99).
E é exatamente em virtude dessa sua estrutura institucional e organizacional, que a sociedade civil se distingue da própria esfera pública. As duas não devem ser confundidas do ponto de vista de sua constituição. O espaço da publicidade não pode ser visto como uma instituição, organização ou sistema, mas como uma estrutura discursiva, “uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos
comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos... A esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado para o entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo não com as funções, nem com os conteúdos da comunicação cotidiana” (Ibidem: 92).
Portanto, se compreendemos bem essa relação, vemos que são as instituições da sociedade civil que viabilizam a transformação dos discursos capazes de solucionar problemas, formados nas redes de comunicação da esfera pública privada, em questões de interesse geral, no quadro das esferas propriamente públicas. Ora, embora a concepção de um domínio da sociedade civil, desligado da sociedade política, seja um conceito moderno, a idéia de um espaço social de formação de uma "opinião pública" já era vivenciada, na polis grega, como o verdadeiro locus do poder e como o fundamento da democracia. Aqui cabe ressaltar que, também para Habermas, a existência de uma esfera pública politicamente ativa é essencial para a consolidação dos regimes verdadeiramente democráticos, que buscamos alcançar: “Na perspectiva de uma teoria da democracia, a esfera pública tem que reforçar a pressão exercida pelos problema", ou seja, ela não pode limitar -se a percebê-los e a identificá-los, devendo, além disso, tematizá-los, problematizá-los e dramatiza-los de modo convincente e eficaz, a ponto de serem assumidos e elaborados
pelo complexo parlamentar. E a capacidade de elaboração dos próprios problemas, que é limitada, tem que ser utilizada para um controle ulterior do tratamento dos problemas no âmbito do sistema político” (Ibidem: 91).
Coloca-se, dessa maneira, a necessidade de tradução das questões privadas em questões políticas, e de controle do poder público pelos organismos da sociedade civil, o que já permite vislumbrar a relação íntima e intricada que se estabelece no seu pensamento entre o público e o privado, entre a política e a sociedade. Um é o detentor legítimo do poder, porque representa a vontade da maioria, enquanto o outro é o veiculador dos problemas sociais que não possuem força representativa suficiente para serem defendidos pela classe política e, por isso mesmo, pode funcionar como defensor dos direitos das minorias e excluídos. Ambos são, portanto, fundamentais e complementares para desenvolver o jogo democrático. Entretanto, antes de avançarmos nessa direção, julgamos conveniente buscar esclarecer as origens e funções da esfera pública política moderna, que são remetidas pelo autor à esfera pública literária burguesa, que se colocará como o complemento da esfera propriamente privada da vida familiar. E o que faremos a seguir.


A ESFERA PÚBLICA LITERÁRIA COMO MODÉLO
DA ESFERA PÚBLICA POLÍTICA

Por ter sido criada a partir do modelo da esfera pública literária burguesa, a esfera pública política (doravante denominada simplesmente esfera pública) vai receber daquela as características necessárias para organizar a discussão permanente entre pessoas privadas. Tais características poderiam ser resumidas em três grandes atitudes “revolucionárias" - (tendo-se em mente aqui o poder revolucionário das instituições burguesas em relação às estruturas sócio-culturais feudais, naturalmente). Estas seriam: a pressuposição de igualdade de status entre todos os homens, o que quer dizer que o poder e a respeitabilidade dos cargos públicos não vigoram e as relações de dependência econômica não devem ser eficazes; a problematização de temáticas e áreas do saber até então tidas como inquestionáveis (tais como a filosofia, a literatura e a arte que, agora, sendo produzidas para os leigos e o mercado, tornam-se acessíveis a todos, perdendo o seu dogmatismo e a sua aura); e o não-fechamento do público, enquanto capacidade de que todos devam poder participar, em princípio, da discussão. Passemos agora a descrever alguns elementos constitutivos desta esfera pública literária. O surgimento de um público enquanto tal se dá com a criação dos concertos pagos, uma vez que a música tivera anteriormente sempre uma função de representatividade pública (ligada aos serviços religiosos, às festividades sociais da corte, etc.), o que restringia imensamente as oportunidades dos burgueses (e camponeses, naturalmente) ouvirem música, a não ser nas igrejas ou na sociedade aristocrática. Iniciou-se, então, um processo de dessacralização e privatização dos colégios de música que, primeiramente, se emanciparam tanto da Igreja quanto da corte, para mais tarde se transformarem em sociedades públicas de concertos, onde se cobrava ingresso. Isto determinou a transformação da música em mercadoria e o aparecimento de um público desejoso de ouvir música pelo puro deleite que ela proporcionava aos seus apreciadores, e não mais por nenhuma função social específica que pudesse vir a desempenhar. O acesso a esse público era permitido a qualquer um (que tivesse propriedade e formação cultural para isso). A arte se torna, pois, objeto de “gosto", de livre escolha, e passa a se orientar pelo julgamento de leigos, sem competência especial. Esse mesmo processo ocorre no campo da literatura, do teatro e da pintura, quando as escolas se emancipam da dependência da corporação, da corte e da Igreja. E, em todos esses campos da arte, surge uma luta em torno do julgamento dos leigos, do público enquanto instância crítica, onde, até então, apenas um círculo restrito de entendidos tinha a competência do especialista, ligada a privilégios sociais. Nos salões e cafés, os burgueses se reuniam, então, para discutir. Dessa discussão surge a crítica de arte como conversação, que, posteriormente, dará lugar ao "árbitro das artes" - um porta-voz do público e, ao mesmo tempo, seu pedagogo. Surgem também os hebdomadários moralistas, onde aquela conversação é continuada através de outro meio de comunicação: os jornais. Aqui já aparece a intenção de auto-entendimento daqueles que se
sentiam conclamados à maioridade; o público se olha no espelho e, através do diálogo, dos argumentos que são usados para ser convencido, se sente instruído. O público (ou opinião pública) busca entendimento e esclarecimento mútuos no raciocínio de pessoas privadas, motivado por uma nova fonte de subjetividade: a família burguesa. Tal modelo familiar, que tinha o lar como esfera de privacidade, de intimidade, contrastava com a natureza flutuante das relações familiares aristocráticas, onde a genealogia familiar era mantida superficialmente apenas pelo nome. Sobre esta fonte de subjetividade, teremos agora que nos deter momentaneamente.


A FAMÍLIA BURGUESA COMO ESFERA DO PRIVADO
POR EXCELÊNCIA

Embora a família burguesa desempenhasse funções de reprodução material e simbólica da sociedade burguesa, a saber - a econômico-social, de garantir a continuidade pessoal do processo de acumulação de capital, ancorando-se no direito de livre herança da propriedade; e a ideológico-cultural, de assegurar a estreita observância das inevitáveis exigências sociais, introjetando a figura de autoridade no marido e pai e transformando a formação pessoal de seus membros em mero desenvolvimento de habilidades, subordinado ao trabalho socialmente necessário - nutria-se das idéias de liberdade, amor e formação. Os burgueses julgavam que o espaço da sua vida privada, familiar, era independente dos ditames colocados pelo setor privado do mercado e, como tal, reino da pura humanidade. Tal representação da família lhes conferiria uma autonomia em relação à coação social e às relações de poder econômico-políticas, pois acreditavam estar a instituição familiar baseada
apenas na vontade de indivíduos livres e na permanente comunhão amorosa dos cônjuges, cabendo-lhe a função de resguardar o livre desenvolvimento das faculdades das pessoas cultas. A família burguesa, portanto, como lócus do cultivo do livre-arbítrio, da comunhão de afeto e da formação pessoal, incluindo aí a formação da personalidade, permitia a formulação de um conceito novo de humanidade, que se pretendia inerente a todos os homens, definindo-os por estes traços como "humanos", sem necessidade de evasão para o transcendental, a fim de escapar da coação da ordem vigente. Habermas interpreta essa emancipação psicológica dos homens e mulheres como correspondente à emancipação política da classe burguesa: os donos de mercadorias se vêem como autônomos em relação às diretivas e controles estatais, decidindo livremente de acordo com as leis do mercado e a busca de rentabilidade. Ambas autonomias eram meramente ilusórias, contudo. De tudo isso, entretanto, o importante a reter é que, nas camadas mais amplas da burguesia, a esfera do público surge como ampliação e suplementação da esfera (privada) da intimidade familiar: a subjetividade oriunda da intimidade pequeno-familiar, que quer entender a si própria, dá origem a uma literatura e a um público leitor, de pessoas privadas, que quer discutir publicamente o que foi lido. Com a criação da imprensa e da crítica de arte profissional, surgem instituições que serão refuncionalizadas para a esfera pública política, onde a discussão não girará mais em torno de questões íntimas, subjetivas, mas de questões privadas, relativas às tarefas propriamente civis de regulamentação de trocas de mercadorias, e o diálogo estabelecer-se-á com base na discussão pública, na disputa dos proprietários privados com o poder público.


A ESFERA PÚBLICA POLÍTICA MODERNA

Assim, em oposição à esfera pública antiga, onde as tarefas de uma comunidade
de cidadãos, agindo em conjunto, eram propriamente políticas e diziam respeito à res pública, na esfera pública moderna, um público constituído de pessoas privadas conscientizadas (também cidadãos) se volta contra o poder público (estatal) para debater as questões propriamente civis de uma sociedade, que dizem respeito à esfera do privado. Contra o privilégio do "segredo de Estado", que permitia aos soberanos perpetuar a dominação, as assembléias dos estados já começavam a querer opor o domínio exclusivo da lei -agora não mais identificando justiça com direitos adquiridos, mas com legitimidade oriunda da emanação de normas gerais e abstratas, válidas para qualquer um. A lei é pensada como lei universal, essência de normas genéricas e permanentes; enfim, identificada com a racionalidade. Assim, o domínio público passa a ser associado ao domínio da lei e da própria razão. A publicidade deve agora servir para impor uma legislação baseada na razão, isto é, onde a lei manifesta a razão expressa na opinião pública. O grande problema aqui é que os burgueses não se davam conta de que a racionalidade que ali imperava era a racionalidade econômica do mercado, onde se confundia o papel de seres humanos com o de proprietários privados, fazendo convergir seus interesses enquanto classe com seu interesse pelas liberdades individuais, e identificando sua busca por emancipação política com a emancipação da humanidade.
Por tudo que acabamos de dizer, fica claro que, na interpretação habermasiana de esfera pública burguesa, aquela concepção de público formada de pessoas iguais não se tornou realidade, não se concretizou efetivamente, embora sua reivindicação tenha sido institucionalizada e, mesmo enquanto ideal apenas, tenha sido eficaz.


A REFUNCIONALIZAÇÃO DO PÚBLICO E DO PRIVADO

Com a evolução do capitalismo, de uma fase comercial e concorrencial para um estágio altamente concentrador, típico da fase monopolista, associada à necessidade de um crescente intervencionismo estatal para amenização das crises cíclicas deste modo de produção, Habermas percebe uma mudança nas relações entre o público e o privado, que faz desaparecer a distinção entre essas duas esferas. As instituições, tanto privadas, quanto públicas, se sintetizam num complexo de funções não mais diferenciáveis. O autor identifica, nessa situação, dois processos correlatos: um de estatização da esfera privada - com a necessidade do poder público assumir funções de indenização social, de pacificação dos conflitos e de regulamentação dos investimentos privados, além da sua função essencialmente administrativa; outro, de privatização do público, já que a publicidade, isto é, aquele domínio de racionalidade expresso na opinião pública, se transforma agora em consumismo cultural, ou seja, em veículo de propaganda de produtos, pessoas ou símbolos, com a finalidade de influir econômica e politicamente sobre os indivíduos. Esses dois processos permitiriam o surgimento de uma formação social neutra, em que as grandes burocracias se transformam em grandes empresas, e as grandes empresas substituem o poder público. Esta é a primeira tese do autor, esboçada em Mudança Estrutural da Esfera Pública. As suas duas outras teses são apenas o desdobramento dessa primeira. Sua segunda tese, então, faz referência ao desaparecimento do privado, na medida que o trabalho se transforma em setor quase-público. Os contratos deixam de ser individuais para serem coletivos, assim como as negociações passam a ser feitas através de associações de empresas e sindicatos, que passam a desempenhar o papel antes atribuído às leis. A esfera privada se reduz, praticamente, apenas à esfera familiar, e esta, além de trocar sua função produtiva pela de consumo, (pois deixa de ser a unidade de renda, agora que a renda se tornou individual), caracteriza-se, cada vez mais, como esfera de lazer em oposição ao contexto funcional do trabalho social, e torna-se aparentemente cada vez mais íntima. Assim, as funções sociais importantes que cumpria (de formação do indivíduo, da esfera pública literária e política) são agora absorvidas pela esfera pública, sendo que a autonomia privada é substituída por garantias públicas de status. A família é, portanto, enfraquecida em sua autoridade e o domínio privado é, cada vez mais, desprotegido e sujeito à influência de instâncias quase-públicas. E o indivíduo, que passou a ser a unidade econômica, passa a ser também a fonte de subjetividade daquele domínio de interioridade, de privacidade, que antes correspondia à família. A terceira tese do autor, por sua vez, é a da decomposição da esfera pública e da alteração de suas funções políticas: como as instituições da esfera pública foram se expandindo, mas, ao mesmo tempo, se retirando da esfera estatal e se reinserindo cada vez na esfera privada, passam a ser vulneráveis a interesses privados, que antes não intervinham na disputa pública de opiniões. Agora, a esfera pública torna-se meio
de propaganda e atuação de proprietários privados sobre pessoas privadas, e do ponto de vista político, passa a representar os interesses dos proprietários privados como interesses de classe, o que a torna cindida em interesses conflitantes. Exatamente para poder influir nesses interesses é que a propaganda começa a assumir um caráter quase político, através das relações públicas, que visam manipular as pessoas para consumir certos produtos, aceitar certas autoridades, pessoas ou símbolos. Tudo isso é escamoteado sob o pretexto de estar promovendo o bem comum, de emprestar a seu objeto a autoridade de um objeto de interesse público. A principal técnica usada aqui é a de fabricar o consenso, utilizando-se para isso de técnicas psicológicas.
Este processo descreve por que, no lugar da esfera pública literária, surge o setor pseudopúblico, ou aparentemente privado, do consumismo cultural, em que desaparece a discussão entre indivíduos na sociedade e com ela o raciocínio literário e político, restando apenas atividades de grupo mais ou menos obrigatórias. Embora haja tendência ao debate público, ele próprio se tornou um bem de consumo e segue regras bem definidas, que valorizam muito mais os processos do que os conteúdos discutidos. Uma vez que as leis do mercado também teriam penetrado na esfera das pessoas privadas reunidas como público, perder-se-ia também a possibilidade de distinguir interesses públicos de interesses privados,
negócios de pessoas, ciclo da produção e do consumo do raciocínio de pessoas privadas reunidas num público político (emancipado de suas preocupações com as necessidades básicas). Dessa forma, o anterior exercício do uso público da razão tende a se converter em consumo, e a comunicação pública se dissolve em atos estereotipados de recepção isolada.
Outro dos traços da esfera pública contemporânea é o de que a cultura agora é feita para as massas, para o consumo de pessoas com nível de formação relativamente baixo - o que, se por um lado, democratiza o acesso aos bens culturais, à educação e à informação, por outro, não permite uma educação das pessoas tal como no espírito do Iluminismo. Sabemos que a cultura de massas prima pelo entretenimento agradável e facilmente digerível, colocando o público numa postura passiva, (como no rádio, televisão e cinema, onde o público é mero espectador), o que provoca a perda do uso público da razão, da capacidade crítica, do poder de contrapor, de contradizer, de assumir uma distância em relação aos fatos oferecidos para consumo imediato pelos meios de comunicação (que a imprensa permitia, por exemplo). Há ainda outra característica importante na cultura de massas, expressa no fato de que ela é primeiramente assimilada pelas camadas sociais em processo de ascensão. Estas não são socialmente inferiores, mas percebem-se assim por não serem cultas e, exatamente por isso, buscam legitimação cultural na forma do consumismo acrítico desses bens.
A conclusão de todo esse processo é a cisão, e conseqüente decadência, da esfera pública entre uma minoria de especialistas, de intelectuais, que não pensam publicamente, e a grande massa de consumidores dos meios de comunicação de massas, onde a esfera pública assume funções de propaganda, como meio de influir, política e economicamente, nas decisões dos indivíduos.


A SEGMENTAÇÃO DO PÚBLICO E A NECESSIDADE
DE RECUPERAR A PUBLICIDADE GENUÍNA

Habermas analisa as sociedades contemporâneas, como acabamos de ver, como aquelas que vivenciam a decadência da esfera pública burguesa, primeiro a literária e posteriormente a política - uma vez que atribui à esfera pública nova função, de propaganda, como meio de manipular opiniões, de criar agências de moldagem de opiniões, de engendrar ou fabricar consenso para formar a aceitação de uma pessoa, produto, organização ou idéia. Isto a coloca em oposição direta àquela idéia de opinião pública enquanto lugar da concorrência aberta de opiniões, onde se busca uma concordância racional, tal como concebida na esfera pública política burguesa.
Percebe-se, portanto, em nossas sociedades, verdadeira dicotomia entre a concepção de uma opinião pública - que busca traduzir o interesse geral, chegar a uma concordância racional sobre opiniões em concorrência e exercitar uma crítica competente que objetiva desmistificar a dominação, fazendo uso público da razão; e uma opinião não-pública - que traduz interesses privados privilegiados, manipula a opinião para fabricar um consenso, fingindo um interesse público no qual faltam critérios, e visa apenas produzir assentimento e conformismo. E são exatamente aquela idéia e funções de uma esfera pública politicamente ativa, pretendidas pelo liberalismo (clássico), que Habermas deseja reabilitar, por sua ligação necessária entre discussão pública e norma legal (Habermas, 1997, vol. I: 172), uma vez que as leis deveriam traduzir sempre princípios universais que traduzissem, se não o interesse geral, pelo menos os defendidos por uma maioria previamente esclarecida, o que seria assegurado
pelo exercício irrestrito da discussão pública e pela distribuição eqüitativa do poder de representação política.
Isso nos leva diretamente à questão do papel dos partidos políticos na formação da opinião pública genuína. Na década de 80, o autor não creditava à atividade parlamentar a possibilidade de exercer essas funções, pois os partidos políticos, outrora partidos de opiniões, de notáveis, onde havia comunicação permanente entre os centros de discussão e as sessões do Parlamento, onde as opiniões políticas tinham maciça ligação com as bases, e reivindicavam uma objetividade de julgamento que transcendia os meros interesses, agora
se reestruturaram sobre uma base de massa, com um funcionamento deslocado de suas origens, burocratizado, voltando-se para a integração ideológica e a mobilização política das grandes massas de eleitores. Surgem os políticos profissionais, e as discussões são substituídas pela propaganda sistemática. Os partidos continuam a ser instrumentos de formação de vontades, mas não nas mãos do público, e sim daqueles que comandam o aparelho do partido.
Os partidos passam a ser partidos de facções e o Parlamento, uma assembléia de facções, já que devem intermediar e representar um número cada vez maior de interesses das organizações das esferas privadas. O parlamentar, por sua vez, que deveria antes obedecer a sua consciência, torna-se agora apenas um membro técnico-organizativo, um funcionário do partido, ao qual tem de se curvar. Os acordos são fechados previamente entre as facções que compõem os diversos partidos e os deputados individuais vão para o Parlamento a fim de registrar decisões já tomadas. A publicidade, de uma função crítica, passa a ter uma função demonstrativa, integrativa, onde os argumentos são pervertidos em símbolos aos quais não se pode responder com argumentos, mas apenas com identificações.
Já na linha da sua teoria do discurso, elaborada em Direito e Democracia: entre facticidade e validade, em 1992 (publicado no Brasil em 1997), Habermas parece ser mais condescendente em sua avaliação da representatividade política. Ali - embora todo poder político emane do poder comunicativo dos cidadãos, pois somente a totalidade destes últimos tem a capacidade de gerar o poder comunicativo de convicções comuns, definindo, por esse meio, o princípio da soberania do povo - o sistema parlamentar de representação de uma esfera pública genuína passa a ser admitido como uma alternativa satisfatória, desde que passe a respeitar o princípio do discurso. Assim, "o exercício do poder político orienta-se e se legitima pelas leis que os cidadãos criam para si mesmos numa formação da opinião e da vontade estruturada discursivamente". Entretanto, o mais importante é que: "...essa prática ...deve a sua força legitimadora a um processo democrático destinado a garantir tratamento racional das questões políticas". Esse processo deve garantir que "todas as questões relevantes, temas e contribuições, sejam tematizados e elaborados em discursos e negociações, na base das melhores informações e argumentos possíveis". A institucionalização jurídica de formas de comunicação interligadas propiciaria liberdades comunicativas iguais e uma compensação eqüitativa de interesses. Mas a tomada de decisões fundamentadas sobre políticas e leis exigiria decisões "face a face", e nem todos os cidadãos poder-se-iam unir em interações simples e diretas para tal fim. Daí a necessidade de lançar mão do princípio da representatividade política: “O princípio parlamentar da criação de corporações deliberativas representativas oferece uma saída alternativa. A composição e o modo de trabalhar dessas corporações parlamentares têm que ser regulamentados... à luz do princípio do discurso, de tal modo que os pressupostos comunicativos, de um lado, e as condições de negociações eqüitativas, de outro, possam ser preenchidas satisfatoriamente” (Habermas, 1997, vol. I: 213).
Em resumo, a posição que o autor defende, em relação à esfera pública, é a tentativa de estender a publicidade genuína (no sentido de concordância racional e opiniões em concorrência aberta) aos partidos políticos, aos meios de comunicação de massas, às organizações, de modo que essas instituições passem a se estruturar democraticamente estejam, portanto, também sujeitas à supervisão critica da opinião pública. Esse processo, do ponto de vista interno de cada instituição, permitiria maior transparência das suas ligações com interesses privados e o acesso público a seus eventos. E, do ponto de vista externo, possibilitaria uma racionalização do exercício do poder social e político, sob o controle mútuo de organizações rivais presas à esfera pública em sua estrutura interna e também em suas relações com o Estado.
Esse ideal de tornar público todo o exercício do poder, social ou político, onde é fundamental fazer uso público da razão para a sua racionalização, próprio da social-democracia, parece, entretanto, um ideal muito distante de poder ser realizado, pois a possibilidade de alcançarmos a racionalização do poder a partir de um processo crítico de comunicação política, contra uma publicidade demonstrativa e manipulativa, dependeria, segundo o autor, da condição de reduzirmos a um mínimo os conflitos estruturais de interesse e as decisões burocráticas. Quanto à burocracia, Habermas sugere a democratização interna das organizações. No que diz respeito aos conflitos de interesses, eles só poderão ser resolvidos através da busca da expansão da riqueza social, com a obtenção de uma "sociedade de abundância", onde se possam satisfazer as diversas necessidades concorrentes e os antagonismos desapareçam, dando lugar à formação de um interesse geral, de um consenso verdadeiro. Estas eram as idéias que Habermas defendia, nas décadas de 50 e 60, quando da elaboração e publicação de Mudança Estrutural da Esfera Pública. Sua avaliação, naquele momento, era de que essas duas soluções não seriam utópicas e poderiam vir a ser realizadas, já que a social-democracia criaria a possibilidade de tomar real uma esfera pública politicamente ativa, na medida que exigiria que todo o poder social e de dominação fosse público.
Interessa-nos, agora indagar se atualmente Habermas ainda se mantém fiel a estas concepções. (Nota: No Prefácio de 1990, da edição francesa de Mudança Estrutural da Esfera Pública, Habermas sublinha que, quando decidiu analisar a questão da esfera pública burguesa - na década de 50 -, idealizou-a a partir do modelo weberiano de tipo-ideal. A segunda autocrítica que faz é a de que ali ainda se apoiava nos pressupostos do materialismo histórico para conceber a passagem do Estado constitucional democrático e social para a democracia socialista, baseando-se numa concepção totalizante da sociedade e da auto-organização social que, atualmente, é bastante duvidosa. Aquela concepção social materialista teria sido alterada pela formulação de sua Teoria do Agir Comunicativo (que data de 1981), quando passa a conceber as sociedades enquanto sistema e mundo-da-vida, numa perspectiva que toma emprestado do funcionalismo (estruturalista) parsoniano e da fenomenologia seus conceitos, embora com algumas revisões, e não mais do materialismo histórico. Ao mesmo tempo, teria começado a perceber uma identificação entre o cidadão e o cliente do Estado, superando, dessa forma, a interpretação idealista rousseauniana do Estado como veículo da vontade geral, e apontando para o fato de que o poder público não é inocente na instrumentalização das instâncias públicas enquanto mecanismos de cooptação política.)
E, já de início, podemos adiantar que, a julgar pela sua última grande obra, acima citada, nosso analista das sociedades contemporâneas continua a acreditar, apesar de todas as suas críticas a esse sistema político, no potencial da social-democracia e do Estado constitucional de direito, de permitir uma expressão democrática dos interesses e de assegurar os direitos dos mais diversos grupos sociais -embora com aquela mesma condição de que haja uma esfera pública ativa e atuante para defender as estruturas de formação de opinião e vontade das deformações que lhe impõem tanto as necessidades de dinheiro impingidas pelo sistema econômico, quanto as necessidades de poder colocadas pelo sistema administrativo-político. Mesmo agora, depois da constatação de um enfraquecimento, cada vez maior, dos Estados nacionais de continuarem a praticar suas políticas redistributivas reguladoras do mercado, o autor continua a defender a manutenção dos princípios do Estado intervencionista. Isto fica evidente quando declara que: "Não vejo nenhum impedimento de ordem estrutural para o prolongamento da solidariedade civil nacional e da política estatal de bem-estar social no âmbito de um Estado federativo pós-nacional" (Habermas, 1998: 137). Devemos proceder por partes, entretanto, para evitarmos que importantes elementos desse debate sejam deixados de fora. E, de início, julgamos importante esclarecer qual a postura de Habermas a respeito da social-democracia.


A SOCIAL-DEMOCRACIA E A FORMAÇÃO DE UMA VONTADE
POLÍTICA RACIONAL APOIADA NUMA ÉTICA DO DISCURSO

A tarefa fundamental do Estado de bem-estar social, segundo o autor, seria disciplinar o crescimento natural do poder econômico e afastar do mundo da vida dos trabalhadores os efeitos destrutivos de um crescimento sujeito a crises, típico do sistema capitalista, reformando as suas condições de vida, para que se alcançasse um alto grau de justiça social. O poder de governar pela via parlamentar seria, então, o meio indispensável para que o Estado pudesse agir em relação à obstinação sistêmica da economia, o que teria levado a se perder de vista toda reserva em relação ao poder, que não é, de forma alguma, inocente. Isto significaria que os instrumentos jurídico-administrativos de implementação de um programa sócio-estatal não seriam um instrumento passivo, pois se utilizariam do poder para ganharem força de lei e para serem financiados pela administração pública e implementados no mundo da vida de seus beneficiários, gerando um conjunto de práticas de singularização dos fatos, normatização e vigilância brutalmente reificante e subjetivizante da comunicação quotidiana, além de criador de deformações no mundo da vida, capazes de provocar conflitos psíquicos e corpóreos. Desse ponto de vista, Habermas
identifica uma contradição entre os fins a que se propõe o Estado social, a saber, a criação de formas de vida igualitárias, garantindo liberdade de movimentos para a auto-realização e a espontaneidade, e os meios de que se utilizaria, ou seja, a burocratização.
Apesar disso, e de toda a fragilidade econômica e política do Estado intervencionista, o autor afirmava, na década de 80, que, “em sociedades como as nossas, não há alternativas visíveis para o Estado social, tanto em relação às funções que cumpre, como às exigências normativamente justificadas, que satisfaz” (Habermas, 1987: 99-102). E é exatamente por isso que ele defendia, naquele momento, que o projeto de um Estado social devesse ser continuado num nível mais alto de reflexão, em que, naturalmente o próprio Estado intervencionista fosse socialmente contido. E, para que essa limitação do potencial de manipulação do cidadão se tomasse possível, seria fundamental assegurar procedimentos de deliberação pública que efetivamente garantissem igualdade de condições para a participação no debate público. Esta orientação, como veremos adiante, vai valer tanto para as políticas nacionais internas, quanto para uma política interna mundial.
São esses procedimentos que formam as condições de possibilidade de uma democracia deliberativa, onde a lei seja o resultado de uma discussão e decisão gerais. Habermas acredita que, dessa forma, é possível criar uma vontade política racional, através da argumentação e da negociação públicas, em que o interesse mais geral seja estabelecido de modo imparcial: “Através do medium de leis gerais e abstratas, a vontade unificada dos cidadãos está ligada a um processo de legislação democrática que exclui per se todos os interesses não-universalizáveis, permitindo apenas regulamentações que garantem a todos as mesmas liberdades subjetivas" (Habermas, 1997, vol. I: 136). Nesse sentido, o papel de sua ética do discurso, proposta em conjunto com Karl Otto Apel (em 1983), em Consciência Moral e Agir Comunicativo (publicado no Brasil em 1989: 61-141), é precisamente o de avaliar as pretensões de validade normativas das posições político-práticas que são colocadas por uma sociedade, através da possibilidade de se estabelecer sobre essas posições um acordo justificado (isto é, em que sejam apresentadas as razões de cada parte, de forma a fundamentar as posturas assumidas) entre todas as pessoas concernidas que pretendam se engajar na discussão.
A ética do discurso parte do estabelecimento de um princípio moral, o princípio de universalização ou U, cuja formulação é a seguinte: "Toda norma válida tem que preencher a condição de que as conseqüências e efeitos colaterais que previsivelmente resultem de sua observância universal, para a satisfação dos interesses de todo indivíduo, possam ser aceitas sem coação por todos os concernidos". Este princípio vem se afirmar contra três formas de relativismo, a saber, o ceticismo ético, o relativismo ético e as éticas materiais, confirmando, por esse motivo, respectivamente, os princípios do cognitivismo, do universalismo e do formalismo. Em primeiro lugar, contra o ceticismo ético, permite demonstrar que os juízos morais têm um conteúdo cognitivo e não apenas subjetivo ou psicológico, permitindo que as questões prático-morais possam ser decididas com base em razões, possam ser fundamentadas racionalmente. Em segundo lugar, como reação ao relativismo ético, supõe que, em razão de uma racionalidade mais abrangente, apesar dos diferentes valores culturais próprios a cada sujeito, os juízos morais possam erguer uma pretensão de validade universal e qualquer um consiga chegar aos mesmos juízos sobre a aceitabilidade de normas de ação. Em terceiro lugar, por seu caráter universalista, isto é, genérico e abstrato, elimina quaisquer questões éticas concretas, permanecendo apenas no nível de princípio normativo e, desta forma, se colocando à margem do relativismo cultural.
E interessante notar que, mesmo com estas características, a ética discursiva não deve ser confundida com quaisquer outras éticas cognitivistas, universalistas e formalistas, porque ela não tem esfera de validade deôntica, mas estritamente deontológica. Isto quer dizer que "não dá nenhuma orientação conteudística, mas, sim, procedimento rico de pressupostos, que deve garantir a imparcialidade da formação do juízo". Ela é um proceduralismo, que proíbe que se fixem, de uma vez por todas, numa teoria moral, determinados conteúdos. E nesse sentido que se distingue, por exemplo, da teoria da justiça de Rawls (na sua obra homônima, já citada), que pretende estabelecer alguns princípios de
justiça distributiva. Procura ser uma contribuição para um discurso prático, e não uma fundamentação filosófica para um "ponto de vista moral". Mas o que é um discurso prático? É “um processo, não para a produção de normas justificadas, mas para o exame de validade de normas consideradas hipoteticamente". O conteúdo da ética do discurso, portanto, se esgota em dois princípios, o de universalização, que é uma regra de argumentação, e uma idéia fundamental da teoria moral, a saber, o próprio princípio da ética do discurso ou D, que se exprime na seguinte formulação: “Toda norma válida encontraria o assentimento de todos os concernidos, se eles pudessem participar de um discurso prático".
Uma vez estabelecidas capacidades iguais para todos os sujeitos morais e sociais, e formulados os princípios U e D, estariam delineadas as condições comunicativas suficientes e necessárias para o julgamento das pretensões de validade das normas sociais de ação. Estas seriam as condições de possibilidade ou as bases transcendentais para a realização de debates igualitários. Mas, como realizar essas condições de possibilidade efetivamente, no campo social? Estes pressupostos comunicativos deveriam ser institucionalizados como procedimentos de decisão pública. E aí, exatamente, se revelaria a importância da função do Estado que, se servindo do direito, deveria estabelecer todos os processos necessários para tal fim, de modo que somente sob essas condições é que as decisões majoritárias passassem a ser legítimas. Nas palavras do autor, “partindo do pressuposto de que uma formação política racional da opinião e da vontade é possível, o princípio da democracia simplesmente afirma como esta pode ser institucionalizada - através de um sistema de direitos que garante a cada um igual participação num processo de normatização jurídica, já garantido em seus pressupostos comunicativos” (Habermas, 1997, vol. I: 146). Sendo assim, torna-se imperioso agora analisar o papel do Estado de direito como garantidor de uma democracia deliberativa verdadeira. É o que analisaremos a seguir.


ESFERA PÚBLICA E ESTADO DE DIREITO

Foi exatamente para esclarecer como o direito poderia vir a assegurar o exercício irrestrito da discussão pública, e a distribuição eqüitativa do poder de representação política, que nosso pensador se lançou, no início dos anos 90, na empreitada de escrever uma obra volumosa, Direito e Democracia, entre facticidade e validade, já citada. Sim, porque para assegurar que todos os afetados pelas normas sociais gerais e decisões políticas coletivas possam participar de sua formulação, deve-se recorrer a procedimentos que permitam a realização de um discurso prático, que só o direito pode garantir. É necessário, portanto, que o próprio exercício democrático seja institucionalizado e tornado objeto de regulamentação jurídica. Assim, “na visão do princípio do discurso, é necessário estabelecer as condições às quais os direitos em geral devem satisfazer para se adequarem à constituição de uma comunidade de direito e possam servir como medium para a auto-organização desta comunidade. Por isso, é preciso criar não somente o sistema dos direitos, mas também a linguagem que permite à comunidade entender-se enquanto associação voluntária de membros do direito iguais e livre" (Ibidem: 146).
Mas poder-se-ia argumentar que o Estado de direito já cumpre essa função, pois ali não somente se encontram determinadas as atribuições dos três poderes responsáveis por cada momento do processo de confecção, execução e aplicação das leis (a saber, o legislativo, o executivo e o judiciário), como também fica estabelecido que só se pode chamar de leis aquelas normas jurídicas que foram ditadas pelo legislador político, ou seja, pela assembléia legislativa. E, entretanto, pensadas exclusivamente desta maneira, transparece um conceito meramente positivista das leis, desligadas dos conteúdos a que se referem, e fundamentadas apenas no mandato de administração da justiça e do legislador político, ficando o direito totalmente instrumentalizado, posto a serviço da ordem política. É a esse sentido que Habermas se referia, quando o considerava como simples mediun, como mero instrumento, e o colocava, seguindo as pegadas de Weber, como o complemento necessário da economia e do subsistema administrativo para a instauração da modernidade capitalista ocidental (particularmente em sua Teoria do Agir Comunicativo).
Entretanto, percebemos que o autor empreendeu uma mudança em relação a essa forma de pensar, e passou a vislumbrar o direito enquanto instituição, enquanto elemento resultante das interações que acontecem no mundo da vida, ou seja, como expressão do conjunto de regras sociais, por sua vez resultantes das convicções socialmente partilhadas, quando afirma que: "Ao se organizar o Estado de direito, o sistema de direitos se diferencia numa ordem constitucional, na qual o medium do direito pode tornar-se eficiente corno transformador e amplificador dos fracos impulsos sociais e integradores da corrente de um mundo da vida estruturado comunicativarnente". Nesta sua outra dimensão, transpareceria o caráter não-instrumental, normativo, do direito, que coloca a legislação na dependência do poder comunicativo, da mobilização das liberdades comunicativas dos cidadãos, "no potencial de uma vontade comum formada numa comunicação não coagida". E, mais ainda, o autor condiciona a legitimação do poder político a sua ligação com o direito legitimamente estatuído. Nas suas palavras, “A idéia do Estado de direito exige que as decisões coletivamente obrigatórias do poder político organizado, que o direito precisa tomar para a realização de suas funções próprias, não revistam apenas a forma do direito, como também se legitimem pelo direito corretamente estatuído... E, no nível pós-tradicional de justificação, só vale como legítimo o direito que conseguiu aceitação racional por parte de todos os membros do direito, numa formação discursiva da opinião e da vontade” (Ibidem: 172).
Isso abriria uma perspectiva inteiramente nova nas relações entre poder político e direito, já que uma incorporação do exercício da autonomia política dos cidadãos no Estado" implicaria que a legislação passasse a constituir-se como "um poder no Estado. Não nos devemos esquecer de que a tese do autor, nessa obra exaustiva, é a de que há uma tensão entre facticidade e validade que habita no direito. Esta, com a idéia do Estado de direito, isto é, de urna dominação organizada juridicamente, dependente da legitimidade daquele, se transfere para o próprio poder político, que passa a incluir tanto o exercício da autonomia política, como o emprego do poder administrativo, e a concorrência pelo acesso ao sistema político. Mas deixemos o próprio autor falar: “A constituição de um código de poder significa que um sistema administrativo se orienta por autorizações que permitem decisões coletivamente obrigatórias. Por isso, sugiro que se considere o direito como o medium através do qual o poder comunicativo se transforma em poder administrativo. Pois a transmutação do poder comunicativo em administrativo tem o sentido de uma procuração no quadro das permissões legais. A idéia do Estado de direito pode ser interpretada, então, como a exigência de ligar o sistema administrativo, comandado pelo código do poder, ao poder comunicativo, estatuidor do direito, e de mantê-lo longe das influências do poder social, portanto da implantação fática de interesses privilegiados. O poder administrativo não deve reproduzir-se a si mesmo e, sim, regenerar-se a partir da transformação do poder comunicativo. Em última instância, o Estado de direito deve regular essa transferência, sem todavia tocar no próprio código do poder, o que o faria intervir na lógica da auto-orientação do sistema administrativo. Do ponto de vista sociológico, a idéia do Estado de direito ilumina apenas o aspecto político da produção de um equilíbrio entre os três poderes da integração global da sociedade: dinheiro, poder administrativo e solidariedade” (Ibidem: 190).
Contudo, pode-se indagar de onde o direito extrairia sua capacidade de produzir normas e decisões coletivamente obrigatórias, as quais todos, sem exceção, estão submetidos? Uma primeira tentativa de resposta poderia ser a de que as normas jurídicas seriam obrigatórias por estarem ancoradas nos valores morais, abstratos e universais, de uma sociedade. E aqui se pode perceber a extrema proximidade em que se encontram os dois domínios, já que as normas jurídicas parecem receber validade do fato de estarem apoiadas nas normas morais. Além disso, seria em virtude deste caráter normativo universalista que o direito poderia aspirar a regulamentar os possíveis conflitos entre os membros da sociedade, sem qualquer perigo de parcialidade. Entretanto, Habermas nos alerta para uma grande distinção entre normas morais e normas jurídicas: não enquanto relativas ao privado e ao público, respectivamente, mas enquanto expressão de dois níveis diferentes de referência: as primeiras permitiriam a fundamentação racional de questões morais e a possibilidade de decisão racional de questões práticas, trabalhando internamente a um jogo de argumentação dentro dos discursos e negociações realizadas conforme o princípio do discurso; enquanto as segundas operariam no nível da institucionalização externa e eficaz da participação simétrica numa formação discursiva da opinião e da vontade, a qual se realiza em formas de comunicação garantidas pelo direito. Por esta diferenciação, podemos perceber que a legitimidade do direito só se materializa através de um processo de formação discursiva da opinião e da vontade. E observar que Habermas quer acrescentar algo mais a esse veio normativo do direito, de modo que ele também possa tornar-se um meio de assegurar as condições fáticas para utilização dos direitos formais iguais, que efetivamente propicie igualdade de oportunidades.
E a única forma de assegurar essa igualdade de chances, segundo seu ponto de vista, é através da participação: não apenas da participação política formal, que se resume a cada cidadão exercer o direito de votar e ser votado nas eleições oficiais, mas também da participação social e cultural, por meio da sua inclusão na formação de uma opinião pública política, não restrita ao âmbito parlamentar. Isto significa dar oportunidade aos membros de tomar parte na discussão e decisão de questões que dizem respeito à vida em sociedade. E a maneira mais adequada de criar essa possibilidade seria através de sua participação em algum movimento, organização ou associação, ou seja, nas instituições da sociedade civil, que buscasse apoio junto ao poder público para as demandas legítimas da população - isto é, aquelas que, submetidas a um discurso prático, baseado nas regras da teoria da argumentação, tivessem obtido o assentimento racional de todos os interessados - ainda não atendidas pela legislação vigente. Este caminho ressaltaria a extrema importância de dois fatores para a transformação do poder comunicativo em poder administrativo, a saber: de um lado, a função da sociedade civil no processo de consolidação de uma esfera pública política, pois, "a sociedade civil precisa amortecer e neutralizar a divisão desigual de posições sociais de poder e dos potenciais de poder daí derivados, a fim de que o poder social possa impor-se na medida em que possibilita, sem restringir o exercício da autonomia dos cidadãos"; e, de outro, o direito, como o meio, o instrumento daquela transformação. Sim, porque "a formação política da vontade visa a uma legislação, porque ela, de um lado, só interpreta e configura o sistema dos direitos que os cidadãos se reconheceram mutuamente através de leis e porque, de outro lado, o poder organizado do Estado ... só pode ser organizado e dirigido através de leis". Aqui, devemos retroceder até nossas páginas iniciais, para podermos invocar o modelo de ação política atualmente proposto por Habermas e identificado por Axel Honneth, outro pensador crítico da linha frankfurtiana, como "modelo de eclusas". Nele, os fluxos de comunicação provenientes da periferia (instituições da sociedade civil) teriam que passar pelas eclusas dos procedimentos democráticos do Estado de direito para poderem exercer sua influência sobre o Parlamento, os tribunais e a administração, que configuram o centro do poder político.
Isto nos força a considerar a relação necessária entre opinião pública e representação parlamentar. E a posição de Habermas a este respeito é a de que as comunicações políticas estabelecidas informalmente pelos cidadãos devem fluir livremente, sem estarem pressionadas pelas exigências de uma tomada de decisão. Entretanto, visam a se tornarem legislação e acabam se tornando a matéria-prima das decisões das corporações legislativas. Desse modo, a competência legislativa própria da totalidade dos cidadãos passa a ser assumida pelas corporações parlamentares, que devem fundamentar as leis através de um processo democrático. Isso mostra a função complementar que se deveria estabelecer entre a formação informal de opinião política e o trabalho de representação da vontade política dos cidadãos por meio dos partidos. Para que tal complementaridade possa acontecer é fundamental, então, respeitar o princípio que estabelece esferas públicas autônomas e o princípio da concorrência entre os partidos. Nas palavras do autor: “Na linha da teoria do discurso, o princípio da soberania do povo significa que todo o poder político é deduzido do poder comunicativo dos cidadãos. O exercício do poder político orienta-se e se legitima pelas leis que os cidadãos criaram para si mesmos, numa formação da opinião e da vontade estruturada discursivamente... Ora, a decisão fundamentada e obrigatória sobre políticas e leis exige, de um lado, consultas e tomadas de decisão face to face. De outro lado, nem todos os cidadãos podem "unir-se" no nível de interações simples e diretas", para uma tal prática exercitada em comum. O princípio parlamentar da criação de corporações deliberativas representativas oferece saída alternativa. A composição e o modo de trabalhar dessas corporações parlamentares têm que ser regulamentados ...sob pontos de vista da lógica da distribuição de tarefas. Por isso, o modo de escolha, o status dos deputados, ...bem como o modo de decisão nas corporações ...levantam questões de princípios. Estas têm que ser reguladas à luz do princípio do discurso, de tal modo que os pressupostos comunicativos necessários para discursos pragmáticos, éticos e morais, de um lado, e as condições de negociações eqüitativas, de outro, possam ser preenchidas satisfatoriamente” (Habermas, 1997, vol. I: 213-214).
Da lógica dos discursos resulta também o princípio do pluralismo político e a necessidade de complementar a formação da opinião e da vontade parlamentar, bem como os partidos políticos, através de uma formação informal da opinião na esfera pública política, aberta a todos os cidadãos. Tudo isso nos leva a concluir que aquele caráter coletivamente vinculante do direito, ao qual nos referíamos acima, deixa de estar fundamentado apenas na moral vigente, mas ganha legitimidade pelo fato de os cidadãos participarem na produção das leis, que se tornam obrigatórias exatamente pelo fato de a legislação ser fruto da autolegislação. Aqui transparece, portanto, a diferença entre legalidade e legitimidade. E essa diferenciação nos permite estabelecer as distinções e pontos de complementação entre os campos do direito, da política e da moral.


DIREITO, POLÍTlCA E MORAL

Vamos iniciar com as distinções entre o direito e a política. Segundo nosso autor, a tese do direito positivo, a qual ele deseja objetar, seria a de que a política antecede o direito, de que a ordem jurídica é criada para permitir a administração e o exercício do poder burocrático. A história, segundo sua perspectiva, se encarregaria de desmentir essa concepção, pois seria a evolução do direito que teria permitido o surgimento de uma ordem política em que poder e direito estatal se constituem reciprocamente. Tanto para o poder, como para o direito, Habermas estabelece funções próprias, a saber, a realização de fins coletivos e a estabilização de expectativas de comportamento, respectivamente; assim como indica funções recíprocas, a institucionalização do direito (por parte do Estado) e os meios (jurídicos) de organização da dominação política. E difícil imaginar que o direito possa ficar inteiramente absorvido pela política ou, inversamente, cindido por inteiro do sistema político, pois a redução das normas jurídicas a mandatos de um legislador político implica que o direito se dissolve, levando consigo a esfera política também, uma vez que, quando o direito está totalmente a serviço do sistema político, perde sua força legitimadora e, por conseqüência, a dominação política não pode ser encarada como poder legitimado juridicamente. Dessa forma, se o poder da administração do Estado não estiver apoiado num poder comunicativo normatizador, a fonte da justiça, da qual o direito extrai a sua legitimidade, secará.
Além dessa constituição recíproca entre direito e política, determinadas estruturas de consciência moral também teriam desempenhado importante papel na articulação entre direito e poder estatal. Dessa forma, no período medieval, estruturas de consciência moral convencionais, ligadas a normas ancoradas na tradição e moralmente obrigatórias, tornaram possível transformar o poder de fato em autoridade normativa; e só quando se passou a gozar desse poder legítimo é que se pôde implantar normas jurídicas para a organização do poder estatal. Do mesmo modo, no período moderno, o direito natural racional representou nova etapa da consciência moral, agora pós-tradicional, ligando-se a princípios abstratos e universais, e a uma racionalidade processual, onde só seriam aceitáveis aquelas regulamentações que pudessem contar com o assentimento não forçado de todos, dentro de um processo de argumentação racional. É por este motivo que nosso autor propõe que o direito se conforme com a prática de um discurso racional, compreendendo por isso "toda a
tentativa de entendimento sobre pretensões de validade problemáticas, na medida em que ele se realiza sob condições da comunicação que permitem o movimento livre de temas e contribuições, informações e argumentos no interior de um espaço público constituído através de obrigações ilocucionárias" Ibidem: 142). E exige ainda que, "... enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito devem poder examinar se uma norma controvertida encontrar ou poderia encontrar o assentimento de todos os possíveis atingidos" (Ibidem: 138). Assim, a racionalidade do direito moderno exige que distingamos entre normas morais, princípios de justificação e procedimentos, de tal forma que dados procedimentos nos permitem examinar se as normas morais, à luz de princípios válidos, podem contar com o assentimento de todos. Dentro desta ótica, o "sistema de direitos [deverá] apresentar as condições exatas sob as quais as formas de comunicação - necessárias para uma legislação política autônoma - podem ser institucionalizadas juridicamente" (Ibidem: 138). Deste modo, para a justificação das ordens políticas organizadas juridicamente, o direito positivo ficaria submetido não somente a princípios morais, mas também a um modelo de autolegislação, em que os destinatários são simultaneamente os autores de seus direitos. Quando o direito perde toda relação com a moral, com questões de justiça, sua identidade se dissolve, por lhe faltarem os pontos de vista legitimadores sob os quais o sistema jurídico pode se ver obrigado a manter determinada estrutura. Contudo, quando o direito perde sua ligação com a vida social concreta, permanecendo apenas enquanto sistema de símbolos, enquanto sistema cultural, torna-se ineficaz para realizar sua função essencial enquanto sistema de ação, não oferecendo as condições para solucionar consensualmente conflitos de ação, na base de regras e princípios normativos reconhecidos intersubjetivan1ente. Nas suas palavras, "o direito é sistema de saber e, ao mesmo tempo, sistema de ação; ele pode ser entendido como um texto repleto de proposições e interpretações normativas ou uma instituição, isto é, como um complexo de regulativos da ação" (Ibidem: 150).
A conclusão de tudo isso é que, através da interconexão da política com o direito e a moral, se constitui o momento de incondicionalidade do direito, que não permite sua completa instrumentalização. Segundo Habermas, no interior do direito positivo, o ponto de vista moral representaria a formação imparcial do juízo e da vontade coletiva, pois através do julgamento à base de princípios morais abstratos e universais, o direito deveria ter a força transcendente de regular a si próprio, controlando sua própria racionalidade. Assim, a legalidade só obtém validade se a ordem jurídica reage reflexivamente à necessidade de fundamentação do direito positivo, institucionalizando procedimentos jurídicos de fundamentação permeáveis a discursos morais. A simbiose entre direito e moral se dá pela racionalidade dos procedimentos jurídicos institucionalizados que, ligados a critérios institucionais independentes do legislador, dos interessados e do juiz, podem revelar se uma decisão foi produzida conforme o direito ou não.
Mas também não nos devemos esquecer de que a legitimidade do direito apóia-se, em última instância, num arranjo comunicativo, o que quer dizer que, se houve fluxo livre de temas e contribuições, informações e argumentos, é possível supor a racionalidade dos resultados obtidos, com base nos procedimentos corretos. Com esta ressalva, de considerar a fundamentação do direito, tanto do ponto de vista moral, quanto do ponto de vista dos procedimentos comunicativos, Habermas deseja introduzir, para além do seu sentido meramente cognitivo de aceitabilidade racional, outra dimensão importante do princípio do discurso, que fundamenta a legitimidade do direito: é o seu sentido prático de produzir relações de entendimento "'isentas de violência', no sentido de H. Arendt, desencadeando a força produtiva da liberdade comunicativa" (Ibidem: 191). Neste seu segundo sentido é que se evidencia a simbiose entre a normatização discursiva do direito e a formação comunicativa do poder, pois os argumentos usados na constituição da opinião e da vontade também são motivo para a solução de fins comuns. E exatamente porque o medium ‘direito' também é solicitado para situações problemáticas que exigem a persecução cooperativa de fins coletivos e a garantia de bens coletivos, os discursos de fundamentação e de aplicação precisam abrir-se também para o uso pragmático e, especialmente, para o uso ético-político da razão prática. Sim, porque é fundamental para o autor aliar o sentido normativo presente na formação discursiva da vontade coletiva e a prática efetiva da política via negociação parlamentar e ponderação "justa" de interesses. Isso implicaria em mostrar, por exemplo, como se poderia institucionalizar, através de procedimentos jurídicos, a imparcialidade das decisões do legislativo, levando em consideração questões significativas, tais como a da regra da maioria, a das normas que regem as discussões parlamentares, a do direito eleitoral e a da formação da opinião pública no espaço público político.


OS PRINCÍPIOS DO ESTADO DE DIREITO

É este aspecto essencialmente prático da aplicação do princípio do discurso que Habermas quer salientar, ao desenvolver os princípios do Estado de direito. Estes devem garantir o exercício da autonomia política dos cidadãos e a transmutação da vontade comum em programas legais: “Os princípios do Estado de direito se juntam numa arquitetônica construída sobre a seguinte idéia: a organização do Estado de direito deve servir, em última instância, à auto-organização política autônoma de uma comunidade, a qual se constituiu, com o auxílio do sistema de direitos, como associação de membros livres e iguais do direito. As instituições do Estado de direito devem garantir exercício efetivo da autonomia política dos cidadãos socialmente autônomos para que o poder comunicativo de uma vontade formada racionalmente possa surgir, encontrar expressão em programas legais, circular em toda a sociedade através da aplicação racional, da implementação administrativa de programas legais e desenvolver sua força de integração social - através da estabilização de expectativas e da realização de fins coletivos... Neste ponto, gostaria de destacar dois aspectos: de um lado, o Estado de direito institucionaliza o
uso público das liberdades comunicativas...; de outro lado, ele regula a transformação do poder comunicativo em administrativo...(Ibidem: 220-221)”
Para a formação política racional da vontade, temos que lançar mão de discursos ou negociações, que são formas de comunicação que devem ser institucionalizadas juridicamente, para que se possa garantir o exercício do direito de participação política dos cidadãos. Aqui se trata de institucionalizar procedimentos que determinam as regras segundo as quais uma cooperação deve ocorrer. E nunca se pode esquecer de que todos os interesses devem ser considerados simetricamente, e de que é essencial para todos os partidos possuírem o mesmo poder. A diferença entre as duas formas de comunicação reside basicamente em que as negociações buscam regular relações estratégicas, enquanto os discursos sempre se referem a relações comunicativas em que se desenvolvem argumentos pragmáticos, éticos ou morais.
Entretanto, é importante perceber que a institucionalização jurídica coloca uma série de limitações temporais, sociais e objetivas para o discurso, já que o direito se constitui a partir de uma situação social circunscrita espacial e temporalmente. Daí que os pressupostos comunicativos gerais das argumentações só possam ser preenchidos de forma aproximada. E a forma de compensar essa deficiência se constitui na pronta admissão do falibilismo das decisões jurídicas adotadas, sendo prevista sua possibilidade de revisão oportuna. Por outro lado, a inserção do discurso em processos jurídicos permite compensar a fragilidade social de uma racionalidade procedimental apenas imanente, e instalar a obrigatoriedade social de um resultado obtido conforme o processo de argumentação.
Nesse modelo processual da lógica da argumentação, que inicia com questões de escolha racional entre possíveis estratégias de ação, passa pela formulação de modelos de identidade coletiva que traduzam uma forma de viver autêntica, e desemboca na ruptura com as evidências fáticas do mundo da vida, para assumir um enfoque hipotético em relação às normas de ação tematizadas, não se escamoteiam as dificuldades inerentes à adoção de uma perspectiva discursiva, nem às tentativas de se chegar à formulação de uma vontade autônoma. Habermas admite que, nas sociedades complexas, as controvérsias dificilmente comportam um nível discursivo de tratamento para questões moral ou eticamente relevantes, já que manifestam interesses diversos, dificilmente universalizáveis ou redutíveis à primazia de um único valor. Assim, para além do caso ideal, onde as controvérsias deveriam ser prosseguidas com argumentos, restam as negociações, que exigem evidentemente a disposição cooperativa de partidos que agem voltados ao sucesso. Processos de negociação são adequados para situações nas quais não é possível neutralizar relações de poder. Os compromissos obtidos em tais negociações contêm um acordo que equilibra interesses conflitantes. Deve-se poder supor eqüidade nesses compromissos, de tal forma que o princípio do discurso valha nestas situações, pelo menos indiretamente. E, mais ainda, deve-se poder examinar as condições procedimentais do estabelecimento desses compromissos à luz dos discursos morais, exatamente porque deles fazem parte interesses particulares, não generalizáveis, que precisam ser descontextualizados para poderem se tomar compatíveis com o interesse simétrico de todos. O mesmo se aplica aos discursos ético-políticos, pois um auto-entendimento baseado em tradições e formas de vida cunhadoras de identidades acaba privilegiando decisões valorativas que se traduzem em regulamentações não-igualitárias. A conclusão do autor é, portanto, a de que "não se pode reduzir a formação política da vontade à formação de compromissos. Mutatis mutandis, isso vale também para discursos ético-políticos" (Ibidem: 209). Isso quer dizer que todos os compromissos ou programas políticos devem poder sempre ser justificados moralmente. Com uma tônica mais realista semelhante afirma que: "É verdade que a vontade autônoma paga um preço por sua racionalidade, ou seja: no mundo social, onde se negocia, ela não pode impor-se a não ser através da força imperceptível de motivos racionais. É verdade que esse déficit motivacional é compensado nas consultas do legislador político através da institucionalização jurídica" (Ibidem: 205). Com esta última observação, o autor quer nos indicar que há um modo de inserir, nos discursos e na sua racionalidade incompleta, a obrigatoriedade social de um resultado obtido conforme o processo de uma justiça processual quase pura. A institucionalização jurídica, como a etapa culminante do processo da lógica da argumentação que teve início com questionamentos pragmáticos, permite, então, compensar socialmente a fragilidade da racionalidade discursiva, aplicável apenas aos casos ideais.
Habermas parece aqui estar radicalizando o processo de dessublimação da razão, que deve adquirir concretude na vida prática, quando coloca a exigência de que a unidade de uma razão inteiramente procedimentalizada só pode ser recolhida da estrutura discursiva de comunicações públicas. Compensando a pretensão de transcendência (ou de validade) postulada em cada consenso obtido, a institucionalização jurídica dos processos discursivos assegura agora a presença (fáctica) dos elementos da razão comunicativa na vida social. Esta racionalidade processual não legitima, nem isenta de coerção, nenhum consenso que não tenha passado pela reserva falibilista e que não tenha sido exercitado na base anárquica de liberdades comunicativas não-circunscritas. Aqui não há mais pontos fixos, além do próprio processo democrático.



O SENTIDO PRÁTICO DO DISCURSO E SUA LÓGICA
DA ARGUMENTAÇÃO

O processo democrático, que institucionaliza os modos de formação política racional da vontade, deve distinguir entre: a) três níveis de questões, as pragmáticas, as ético-políticas e as morais; b) as formas de comunicação em que devem ser tratadas; c) os tipos de argumentos determinantes em cada uma delas; d) os modos de relação entre a razão e a vontade que se estabelecem ali; e) as espécies de vontades que lhes são correspondentes.
As questões pragmáticas são aquelas que dizem respeito aos meios apropriados para a realização de fins já estabelecidos, que se devem materializar em técnicas e estratégias de ação. Estas têm que estar baseadas em observações e prognoses, que permitem que o agente estabeleça comparações e ponderações a partir da perspectiva da eficácia ou de outras regras de decisão. Nesta primeira etapa, do ponto de vista do discurso, não há relação entre razão e vontade, pois as orientações axiológicas são exteriores à validade das recomendações pragmáticas. A base para estas estratégias de ação é o saber empírico. Nos discursos pragmáticos são determinantes os argumentos que referem o saber empírico a preferências dadas e fins estabelecidos e que julgam as conseqüências de decisões alternativas de acordo com máximas estabelecidas. Entretanto, esta racionalidade teleológica encontra seus limites a partir do momento em que os próprios fins se tornam problemáticos e em que preferências antagônicas exprimem oposições de interesse não solucionáveis ao nível dos discursos. Assim, no nível pragmático procura-se saber o que podemos fazer para harmonizar entre si preferências concorrentes, em função de tarefas imediatas. E é fácil deduzir que aqui devem ser realizadas negociações, evitando estruturas assimétricas de poder e potenciais de ameaça que possam impedir seu êxito. Em termos de formação de vontade, quando se ponderam interesses, fala-se de uma vontade agregada.
As questões ético-políticas exprimem o desejo de clareza, por parte dos membros de uma comunidade, sobre suas formas de vida intersubjetivamente compartilhadas e os ideais que as orientam, ambos decorrentes da autocompreensão cultural e política acerca de sua identidade enquanto comunidade histórica, e sujeitos a transformações. Segundo o autor, "o
esclarecimento dessa autocompreensão é dado por uma hermenêutica que se apropria criticamente das próprias tradições, contribuindo, desse modo, para a conscientização intersubjetiva de convicções axiológicas e orientações de vida autênticas" (Ibidem: 201). Nos discursos correspondentes, os argumentos que contam são os que se fundamentam numa explicação da autocompreensão daquela forma de vida historicamente transmitida, e que orientam as decisões sobre valores segundo a perspectiva de uma conduta de vida consciente e crítica. Aqui, razão e vontade se determinam mutuamente, pois estão inseridas no contexto que analisam, já que as escolhas valorativas dos participantes são coincidentes com a imagem racional do mundo por eles construída, uma vez que não se podem lançar para fora de suas formas concretas de vida. Nesta etapa, em que se busca estabelecer a identidade pessoal e os ideais que acalentamos, a forma de comunicação correlata são os discursos hermenêuticos de auto-entendimento e a vontade que se estabelece por esse meio é uma vontade geral autêntica. Entretanto, embora seja importante saber quais seriam os modos de agir "bons para nós", do ponto de vista daquela comunidade, deve ser colocada outra questão muito importante - a da justiça -que inquire sobre o que é igualmente bom para todos.
E, então, chegamos às questões morais, pelas quais se deve examinar a possibilidade de regular a convivência social no sentido do interesse simétrico de todos. Aqui se buscam as normas justas, aquelas que, em situações semelhantes, todos gostariam que qualquer pessoa seguisse. Nos discursos morais, a vontade de atores que se deixam determinar racionalmente está impregnada de razão prática, pois se dirige à pretensão de validade das normas de ação em questão, analisadas da perspectiva daquilo que todos poderiam querer. Os discursos morais são aqueles em que "são decisivos os argumentos que conseguem mostrar que os interesses incorporados em normas contestadas são pura e simplesmente generalizáveis". Para isso, é necessário ultrapassar a perspectiva etnocêntrica particular a
cada coletividade e assumir uma perspectiva genérica de uma comunidade não circunscrita. O modo de realizar esse alargamento de horizontes é através da prática de uma assunção ideal de papéis, onde cada membro se coloque na situação, compreensão e autocompreensão de mundo de cada um dos outros. No estágio moral, onde queremos estabelecer o modo de agir para sermos justos, fazemos uso dos discursos de fundamentação e aplicação, onde se tenta estabelecer uma vontade autônoma.
Em cada uma dessas formas de comunicação, sejam negociações ou discursos, muda completamente o sentido que a representação parlamentar assume em relação à opinião pública. Desta forma, se a questão é pragmática, não parece haver delegação da vontade por parte dos eleitores a seus representantes, mas apenas a de um mandato para negociar compromissos, onde o decisivo é a exigência de que a prática da negociação garanta que todos interesses e orientações valorativas tenham o mesmo peso. Já quando se trata de discursos ético-políticos para a autocompreensão de coletividades, é fundamental haver, por parte dos participantes, a convivência disposta a aprender com as próprias tradições culturais, formadoras de identidade e a inclusão de todos os membros no discurso, mesmo que de modo diferente. Porque esses discursos têm que ser conduzidos representativamente por razões técnicas, devem ser porosos e sensíveis aos estímulos, temas e contribuições, informações e argumentos fornecidos por uma esfera pública pluralista, próxima à base, estruturada discursivamente, portanto diluída pelo poder. Finalmente, nos discursos morais deve-se supor poder preencher “os pressupostos pragmáticos necessários para uma prática de entendimento pública, acessível a todos e livre de coação interna e externa, os quais admitem apenas a força racionalmente motivadora do melhor argumento. A improbabilidade de existência real dessa forma comunicativa impõe a realização advocatícia dos discursos de fundamentação moral” (Ibidem: 228).
Para os deputados, isso representa uma exigência maior, de transcender os limites da própria coletividade e buscar abrir espaços para amplo espectro de perspectivas de interpretação, acolhendo as cosmovisões de grupos marginais. Também aqui devem atuar não como delegados, mas como participantes, que devem considerar todos os modos de interpretação relevantes. Procedendo dessa forma, através dos discursos ético-políticos e morais, os representantes legislativos se abrem aos círculos informais da comunicação política geral, e a relação entre parlamento e esfera pública se modifica, alterando a idéia da democracia, seja representativa, seja plesbicitária. A questão fundamental seria traduzir o significado constitucional de um conceito normativo de esfera pública, onde todas as informações e argumentos fluam livremente, numa cultura política liberal, que reflita o modo como uma população compreende intuitivamente o seu sistema de direitos. Nesse modelo, não há um corpo político concreto tal como um povo, mas apenas uma nação de cidadãos, com seus modos de sentir e pensar plurais, que precisam ser interpretados de modo estruturalista, para que se possam refletir nas resoluções das corporações legislativas. Assim, os discursos públicos resultantes das esferas públicas autônomas acabam se transformando em compromissos e decisões da maioria.


ESFERA PÚBLICA, CULTURA E REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

Naturalmente, a transformação das discussões públicas em matéria-prima das decisões legislativas deve vir complementada por urna análise crítica dos mecanismos de alienação política dos cidadãos, e vai exigir que se passe a desenvolver tradições culturais, modelos de socialização e uma cultura política baseados na liberdade. Para isso, o mais importante é fomentar o desenvolvimento de modos de institucionalização de um espaço público não investido pelo poder ou o florescer de formas de difusão e organização de uma cultura política libertadora, de seus valores, suas tradições e seus modelos de socialização. E, dentre essas formas de organização e difusão dessa cultura política, se destacam como essenciais para a formação das opiniões as instituições da sociedade civil (" relações de associação", reagrupamentos voluntários fora da esfera do Estado e da economia), seja por participarem diretamente do debate público, seja por suas colaborações implícitas, pois são elas responsáveis por integrar grupos e socializar os indivíduos e suas conquistas, por transmitir os valores da tradição e os conhecimentos culturais, e por se orientarem pela solidariedade.
Há, ainda, outra exigência, para que aquela cultura política referida acima tenha chances de se afirmar: que se consiga estabelecer nova relação entre as esferas públicas organizadas autonomamente da sociedade civil, e a economia e o Estado. Para criar essa nova relação, seria necessário haver nova partilha de poder, em que as esferas de influência entre solidariedade, dinheiro e poder fossem postas em novo equilíbrio, e o poder de integração da solidariedade pudesse resistir à força dos outros dois elementos. Todo esse trabalho teria de ser desenvolvido no interior da sociedade em "uma terceira arena... na qual
fluxos de comunicação dificilmente palpáveis determinam a forma da cultura política e, com ajuda de definições de realidade, rivalizam em tomo do que Gramsci chamou hegemonia cultural - aqui se realizam as reviravoltas nas tendências do espírito da época" e é a favor delas que "todo projeto que quiser redirecionar forças em favor do exercício solidário do governo tem de mobilizar-se" (Habermas, 1987: 113). Ainda segundo suas palavras, "é nesta arena que a esquerda socialista encontra seu papel e seu lugar político. Ela é capaz de formar o fermento para comunicações políticas, que protegem o quadro institucional do Estado democrático de direito, evitando o seu ressecamento" Habermas, 1993: 70). As lutas empreendidas aqui neste espaço, onde as diversas tendências lutam pela hegemonia cultural, segundo o autor, são quase imperceptíveis, “permanecem quase sempre latentes, elas têm lugar nos microdomínios da comunicação cotidiana, apenas de vez em quando condensam-se em discursos públicos e em intersubjetividades de nível mais alto. Em tais teatros, podem constituir-se esferas públicas autônomas, que também se põem em comunicação umas com as outras tão logo o potencial é aproveitado para a auto-organização e para o emprego auto-organizado dos meios de comunicação” (Habermas, 1987: 113).
Deve-se ter em mente, entretanto, que essas esferas públicas autônomas da sociedade civil correm o risco de também se afastarem de suas orientações originais e das concepções de seus membros, para se concentrarem em resguardar sua sobrevivência enquanto organização, mas seria exatamente na combinação ou no equilíbrio entre poder e autolimitação meditada que elas poderiam cultivar os processos de formação radicalmente democrática da vontade.
Todas essas questões vão se tornar ainda mais agudas, com os desafios postos pelo processo de instituição de uma "constelação pós-nacional", bastante distinta daquela "constelação histórica na qual o processo democrático pode assumir uma figura institucional mais ou menos convincente" (Habermas, 2001: 78): o Estado nacional. Entretanto, apesar dos enormes problemas colocados pelos desenvolvimentos que hoje se caracterizam como "globalização", e ao mesmo tempo, "porque a idéia de que uma sociedade pode agir sobre si de modo democrático só foi implementada de modo fidedigno até agora no âmbito nacional" - não se deveria simplesmente aceitar a política neoliberal vigente como uma espécie de fatalismo, mas, ao contrário, vislumbrar, como alternativa a esta forma de política reduzida a um economicismo, modos adequados de desenvolver o processo democrático para além do Estado nacional. Se ultrapassarmos a tradição liberal e republicana de considerar a participação política apenas como expressão da vontade política ou de interesses privados, e passarmos a atribuir-lhe também a função epistemológica de permitir o uso público da razão, de modo que possibilite o acesso universal a um processo deliberativo, cuja natureza fundamenta a expectativa de resultados racionalmente aceitáveis, "tal compreensão de democracia com base na teoria do discurso modifica as exigências teóricas das condições de legitimação da política democrática... Os pesos deslocam-se ...para as exigências de procedimentos dos processos comunicativos e decisórios". Isto cria também novas possibilidades de atuação para formas de legitimação democráticas supostamente fracas. E abre espaço para a participação das Organizações Não-Governamentais (ONGs) nos conselhos de negociação internacional, o que permitiria "tornar transparentes para a esfera pública nacional os processos decisórios transnacionais do nível médio, reconectando-o aos processos decisórios desse nível inferior" (Ibidem: 140).
Outra importante questão que se coloca aqui é a de se indicar quais os mecanismos que devem ser utilizados para a implementação de uma "política interna mundial". Mas, para isso, têm-se de levar em conta que falta à cultura política da sociedade mundial a dimensão ético-política comum que seria necessária para tal construção de uma comunidade e de uma identidade globais. O cerne do problema parece ser, então, a de se será possível desenvolver uma consciência cosmopolita, ou seja, a consciência de uma solidariedade cosmopolita, onde os Estados busquem, para além de seus interesses nacionais, um sistema de "governança global". Isto permitiria a manutenção do nível social já alcançado, pelo menos em termos de Europa, e a eliminação de disparidades sociais extremas.
E Habermas se apressa logo em nos advertir que a estrutura organizacional de um Estado mundial não é adequada para esse patamar mais elevado de uma política múltipla, que busque a sintonização, a universalização e a construção criativa de interesses comuns, levando em consideração a independência e a particularidade dos Estados outrora soberanos. O modelo a ser seguido é o de uma "democracia cosmopolita... (que) se concretizará numa base de legitimação menos ambiciosa, a saber, nas formas de Organizações Não-Governamentais do sistema de negociação internacional que já existe hoje em outros âmbitos políticos" (Ibidem: 138). Estas geralmente atuam através de procedimentos que geram compromissos entre atores que agem de forma independente, e dispõem de um potencial de sanções que garante a manutenção de seus interesses. Já as características de uma política que opera na dependência das constelações de poder dadas não são suficientes para fundarem uma política interna mundial, que está em processo de construção, pois forma uma moldura estática de múltiplas camadas dentro de uma organização mundial, tal como no direito internacional clássico, e não uma imagem dinâmica de interações entre os processos políticos se desenvolvendo em nível nacional, internacional e global. Essa afirmativa ainda é justificada através dos argumentos de que a harmonização dos interesses que se busca, no contexto de uma cultura política comum não pode ser guiada apenas pela força, nem pela racionalidade dos fins, mas deve recorrer também a orientações de valores e a concepções de justiça comuns. Esses são os moldes de uma política estatal vinculada a procedimentos deliberativos internos aos Estados, mas que estão ausentes no nível internacional. É mister pensar em produzir uma legitimação democrática das decisões para além das esferas estatais, ao mesmo tempo que se levem em conta os interesses recíprocos e universais. E, ainda segundo nosso autor, as inovações institucionais só se concretizam em sociedades em que as elites políticas encontram ressonância para tais iniciativas nas orientações valorativas -já reformadas -de suas populações. "Daí os primeiros endereçados de tal 'projeto' não serem os governos, mas sim movimentos sociais e Organizações Não-Governamentais, ou seja, os membros ativos de uma sociedade civil que vai além das fronteiras nacionais" (Ibidem: 74).
Isto não quer dizer que os partidos políticos ocupem posição subalterna, nessa etapa de uma política mundial sem governo global; pelo contrário. Para o autor, os partidos políticos que ainda não abandonaram totalmente a sociedade civil para se entrincheirar no sistema político, e não se agarraram ao status quo, de tal forma que estão buscando perspectivas para a resolução de conflitos que atualmente parecem não ter saída, julgando ainda possuir força para configurar a sociedade, devem antecipar, por ora no nível nacional, onde podem atuar, a esfera de ação européia. "Esta, por sua vez, eles devem abrir programaticamente com o duplo objetivo de criar uma Europa social que ponha o seu peso no lado cosmopolita da balança" (Ibidem: 142).


A ESFERA PÚBLICA ATUAL

Segundo o autor, haveria atualmente dois processos concomitantes ocorrendo na sociedade: de um lado, a pluralização e, do outro, a massificação das formas de vida; um processo de equalização entre os homens e outro de impotência dos indivíduos face à complexidade do sistema. Esses processos competiriam entre si com bastante tensão, impedindo-nos de fazer qualquer afirmativa sobre o futuro. Assim, a resposta para nossas expectativas, em termos de perspectivas democráticas e de justiça social, dependeria exatamente de para que lado o pêndulo irá se direcionar: se para uma pluralização das formas de vida e uma igualdade crescente de direitos, ou se para uma massificação e impotência inelutáveis frente às sociedades complexas. (Neste aspecto, ele reproduz seu diagnóstico feito na década de 50).
Mas, para Habermas, o quadro hoje não parece assim tão pessimista. Quando ele fala da Alemanha após Kohl, por exemplo, sublinha o fato de que “cidadãos autoconscientes tomam nas próprias mãos a eleição de um chanceler... (Pela primeira vez na história da República Federal, um chanceler é desempossado do cargo pelas urnas. Antes, no decorrer da legislatura, era o conchavo dos partidos que determinava a mudança nas coalizões). Numa democracia, os cidadãos têm de se convencer de que, pelo voto, ainda podem exercer influência sobre determinados pontos cruciais de uma política estatizada, encerrada em si mesma. Na antiga República Federal, levou algumas décadas até que essa atmosfera democrática empolgasse as cabeças. Tenho a impressão de que, agora, esse processo foi praticamente selado” (Folha de São Paulo, Caderno Mais, out. de 1998).
Como um filósofo que se identifica com a tradição libertária, que tem seu ponto de origem no lluminismo, atravessa o pensamento kantiano, hegeliano e marxiano e desemboca na teoria crítica frankfurtiana - identificada como vertente do marxismo ocidental, cujo projeto original (da década de 30), de renovar e ampliar as idéias marxistas com contribuições científicas contemporâneas, tais como a psicanálise, e com uma crítica da cultura contemporânea enquanto reificadora do homem, buscou retomar - dele jamais se poderia esperar que assumisse postura pessimista em relação ao aprimoramento humano e à evolução social. Muito já se falou a respeito do viés iluminista e kantiano do pensamento habermasiano, mas agora ele parece cada vez mais evidente, à medida que o autor lança, no espaço de dois anos, duas publicações sobre a mesma idéia, o cosmopolitismo, a saber A Idéia de Kant da Paz Perpétua (em 1996, em comemoração aos 200 anos da obra do filósofo de Konisberg), e A Constelação Pós-Nacional (em 1998). Na primeira, procura reeditar a idéia kantiana de um Estado e um direito cosmopolitas, naturalmente procurando adaptá-la às dificuldades do nosso tempo, onde se observa a perda da capacidade de autogestão dos Estados nacionais diante das demandas de um mundo globalizado. Nesta última obra, defende, pelo menos em termos de Europa, de maneira mais concreta, a necessidade de se instituir um órgão jurídico supranacional para gerir as questões político-econômicas, sociais e ambientais, que ameaçam as nossas sociedades.
Uma vez decretado o fim da autonomia político-econômica dos Estados-Nações, ameaçados pelo processo de internacionalização e cartelização da economia, Habermas continua a insistir na importância da instituição de um espaço público político formado a partir da sociedade civil e das instâncias do direito, mas agora buscando ampliar seu raio de composição e atuação para além das fronteiras nacionais. Esse seria o único meio de impedir a deterioração das conquistas democráticas já alcançadas. Sinalizar para a formação de uma sociedade civil e um Estado federativo pós-nacionais, de onde emergiria uma esfera pública transnacional, seria a maneira de assegurar a continuidade e extensão dos governos democraticamente constituídos, já que, dessa forma, as diversas nações se colocariam sob os olhares críticos daquela opinião pública, num exercício de vigilância mútua. A nível econômico, o primeiro passo já foi dado, pelo menos em termos de Europa,
para a integração das nações, com a criação da Comunidade Econômica Européia. Faltaria, pois, agora, criar ali os mecanismos jurídico-políticos de discussão e deliberação supranacionais, onde os diversos interesses pudessem estar representados e ser defendidos. Há uma passagem em que Habermas coloca essa questão em termos muito claros, que passamos a transcrever:
“Um sistema de negociação internacional que limite uma "race to the bottom" - uma competição desreguladora que leva ao rebaixamento dos custos, estrangula os campos de ação para as negociações de política social e prejudica o padrão social - deveria ter o poder para estabelecer regulamentações efetivas na redistribuição. Políticas incisivas desse gênero seriam, todavia, pensáveis dentro de uma União Européia que - apesar da composição multinacional e de uma posição forte dos governos nacionais – assumisse uma qualidade de Estado. Mas, em termos globais, faltam tanto uma capacidade de ação política de um governo mundial, como também uma base de legitimação correspondente. A ONU é uma comunidade flexível de Estados. Falta a ela a qualidade de uma comunidade de cosmopolitas que -com base numa formação de opinião e da vontade - legitimam e impõem as decisões políticas com conseqüências sensíveis” (Ibidem: 133-134).
“Os defensores de uma "democracia cosmopolita" buscam três objetivos: primeiro, a criação do status político dos ...cidadãos do mundo ... que pertencem às Nações Unidas, não apenas por intermédio de seus Estados, mas também são representados num parlamento mundial pelos representantes por eles eleitos; em segundo lugar, a construção de uma Corte de justiça internacional, com as suas competências usuais, cujos juízos seriam válidos também para os governos nacionais; e, finalmente, a ampliação do Conselho de Segurança, nos termos de um Executivo capaz de ação. Mesmo uma ONU operando fortalecida desse modo e ampliada, nos seus fundamentos de legitimação, poderia tornar-se efetivamente ativa; no entanto, apenas nos âmbitos de competência limitados de uma política reativa de segurança ou de direitos humanos, bem como de uma política ecológica preventiva” Ibidem: 135).
No resto do mundo, outros blocos de países parecem estar seguindo o mesmo modelo de integração, naturalmente buscando o estabelecimento de relações comerciais, ditado pelas demandas do mercado globalizado, de forma a poder competir com maiores chances numa economia cada vez mais restritiva. Feitas esses considerações, pode-se perguntar se seria excesso de otimismo esperar que, como conseqüência da aproximação entre as nações, pudesse surgir aquela esfera pública política transnacional. Ou, então, se estas transformações de natureza econômica nas relações internacionais não poderiam deslanchar mudanças nas ordens políticas e culturais das nações envolvidas, de tal forma que passassem a apontar para patamares de discussão e deliberação pós-nacionais mais igualitários. A viabilidade da institucionalização desses patamares parece ser, a nosso ver, o cerne das questões que hoje estão na ordem do dia.
Gostaríamos de concluir com uma reflexão inspirada na própria teoria da evolução do autor. Segundo sua perspectiva, na dialética entre dinâmica e lógica do desenvolvimento, as demandas, os desafios são postos no nível dos eventos, dos acontecimentos históricos, das necessidades de complexidade crescente da economia, e do impacto causado pelas novas tecnologias. E as respostas, as soluções devem ser buscadas nas estruturas de consciência, na evolução para novos níveis de reflexão. Ora, vivemos a era da economia global e da revolução da informática, que têm provocado profundos desequilíbrios, não apenas nas formas institucionais tradicionais, mas causado mudanças violentas nas formas de integração social, em todas as áreas da vida privada e pública. O alcance dessas mudanças é tão penetrante que chega a alterar conceitos básicos que detínhamos e nos auxiliavam a organizar o mundo, como, por exemplo, a própria noção de espaço e tempo. Então, para fazer face a todas essas profundas alterações em curso, seriam
necessárias estruturas de consciência evolutivamente superiores, resultantes de um processo de aprendizagem desenvolvido inicialmente em nível individual, e, posteriormente, partilhado coletivamente. Desse aprendizado social, surgiriam novos complexos institucionais com capacidade para absorver essas mudanças. Será que a constituição de um Estado pós-nacional seria a expressão desse novo estágio de integração social, como a reflexão de Habermas parece apontar? E, antes de responder apressadamente, gostaríamos de recordar que o Estado moderno, com sua feição territorial e constitucional, pela qual se definiu como Estado-Nação e Estado de Direito, foi uma forma revolucionária, ao nível institucional, de atender às mudanças provocadas pela passagem de um modo de produção feudal para um modo de produção capitalista. Atualmente, embora não possamos sustentar que tenhamos ultrapassado o modo de produção capitalista, podemos afirmar que evoluímos de uma fase em que a base da economia era o capital produtivo, alicerçado sobre a força de trabalho, para um estágio onde a forma dominante é o capital financeiro, e o bem
maior sobre o qual se pode construir riqueza e desenvolvimento é a propriedade sobre o conhecimento, muitas vezes desvinculada da força de trabalho. De todo modo, permanecemos ainda presos ao nível de desenvolvimento econômico característico da modernidade. O que nos sugere que também os quadros institucionais atuais devam corresponder às formas de integração social ali desenvolvidas. Não seria o caso, portanto, de abdicar da estrutura jurídico-política da administração moderna, e menos ainda da visão de mundo que o processo de racionalização cultural viabilizou, traduzindo-se nas formas de consciência pós-tradicionais da ciência, da moral, do direito e da arte modernos. Pelo menos, por enquanto. Estes são até agora nossos únicos valores possíveis.


ARAGÃO, Lúcia. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

___________. A nova intransparência. Novos Estudos CEPRAP - São Paulo, 1987.

___________. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

___________. A revolução e a necessidade de revisão na esquerda: o que significa socialismo hoje? IN: BLACKBURN, R (Org.). Depois da queda. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

___________. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
___________. A constelação pós-nacional. São Paulo: Littera Mundi, 20

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