Saturday, October 08, 2005

A moral humana em jogo na Lavoura Arcaica

Em seu romance de estréia, Raduan Nassar apresenta o trágico ponto de ruptura das relações familiares

\"Que culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço e constância? \", pergunta Jorge de Lima em reflexão que está na abertura de Lavoura Arcaica. De forma brilhante se resume nela o conteúdo de uma novela que fala da incompatibilidade entre a liberdade e a tradição, a clandestinidade do personagem principal e a nobreza da família, onde uma pessoa é prisioneira de um conflito cujo desfecho desde o início se anuncia trágico.É a estória de André, personagem-narrador que vai representar o avesso de uma tradicional família.

Ele parte em sua busca e sem direção, mas para longe de sua família, respondendo apenas à realidade obscura dos seus recônditos desejos, necessidades e inquietude de \"faminto\".O segredo que o protagonista carrega o faz experimentar uma vida que corre paralela a uma outra realidade irreconciliável daquela das convenções sociais e das hipocrisias da tradição aristocrática e razão dos \"saciados\". André nutre uma paixão por sua irmã Ana: \"...Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência meu silêncio! Tinha textura a minha raiva!)...\". Além do impasse que o conflito gerava, ele se revoltava com a educação repressora e o conservadorismo do seu pai e o silêncio submisso da sua mãe para o patriarca.Na sua fuga, nos relata suas transfigurações, tem espasmos, narra a dor e a revolta com a família que o oprimia: \"... não faz mal beber, eu beberei transfigurado, essa transfiguração que há muito devia ter-se dado em casa... \".

A novela segue o fluxo de pensamento dos personagens, modelando uma narrativa que causou admiração e renovação únicas dentro da prosa brasileira. Segundo Alfredo Bosi, crítico literário e professor da USP, Lavoura foi \"uma revelação que marca a história da nossa prosa narrativa\". De certa forma, o escritor arredio, criou uma figura de mito em torno de seu nome, mas a força maior da sua escrita genial aplaca seu distanciamento e sempre o escritor foi figura aclamada por uma quase unanimidade dos críticos.

O portento de Raduan nos leva junto com André por um caminho onde conheceremos a tragédia do homem. André parte para uma fuga que não lhe livrará do destino. Sob a égide do tempo, ele vai encontrar dor e descobrirá que somos reféns do nosso destino. Com maestria, Raduan nos mostra o quanto somos impotentes diante de nós mesmos. É paira sobre toda narrativa a inexorável força da natureza incidindo em um ser humano e fazendo-o descobrir sua fragilidade. O destino e as conseqüências irremediáveis que surgem quando aflora um sentimento fora das convenções.

Lavoura é uma obra que muda a vida de seus leitores, que dispensa meias verdades e que até na dor consegue ser lúdica, pois ensina algo novo, mas não tão palpável. Coisas da alma que não são pesadas nem guiadas pela ordem natural das coisas. “Eu tinha que gritar em furor que a minha loucura era mais sábia que a sabedoria do pai. Que a minha enfermidade me era mais conforme que a saúde da família. Que meus remédios jamais foram escritos nos compêndios, mas que existia uma outra medicina”. Assim como André fala quando se coloca à margem das normalidades e diz que ergue outro equilíbrio na vida, Raduan pavimenta uma linguagem e perpetua um estilo único. Cria fluxos poéticos dentro de uma nova prosa brasileira.

Lavoura Arcaica - (1975 / Brasil). De Raduan Nassar – Editora Companhia de Letras196 págs. R$ 29,50

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