Tuesday, September 14, 2004

Cristóvam Buarque

Visão de Mundo

Cristovam Buarque:

sem medo de ser governo

Ministro da Educação não faz o discurso fácil de oposição interna à política de Antonio Palocci, mas também evidencia que seus marcos são bem outros. Num governo até agora confuso e com um apego às instituições que parece, muitas vezes, frouxo, ele se destaca pela coerência, pela consistência e por seu radical republicanismo. Por Rui Nogueira.

Em 1996, durante uma visita a Cuba, Cristovam Buarque, então governador do Distrito Federal, iniciou uma conversa com o comandante Fidel por volta das 23h30 e só foi dar o assunto por encerrado às 5h do dia seguinte. Um assessor de Fidel avaliou a conversa dos dois e disse que o ditador havia gostado muito do papo, mas fizera um reparo e um pedido: achava que Cristovam deveria falar, um pouquinho que fosse, dos problemas da saúde. Educação, educação, educação, assunto que chegou a agoniar Fidel, é mesmo uma obsessão do doutor em economia, ex-reitor da Universidade de Brasília (1985-1989), ex-governador do Distrito Federal (1995-1998) e agora ministro da Educação do governo Lula.

Cristovam Buarque, 59 anos, é o protótipo republicano da obsessão, como o leitor pode ler nesta entrevista concedida numa manhã de sábado, em Brasília, horas antes de ir almoçar com o colega de ministério Antonio Palocci (Fazenda). Chegou ao posto como uma escolha quase natural e convive pacificamente com o cavalo-de-pau que o ministro Palocci deu na economia e no Orçamento Geral da União, com um superávit primário oficial - 4,25% do PIB - capaz de deixar desesperado qualquer ministro da Educação, em qualquer lugar do mundo. Menos Cristovam, que faz da tal convivência pacífica um desafio e uma guerra criativos.

Durante as duas horas de conversa com Primeira Leitura, expôs-se como alguém que aguarda a oportunidade certa para fazer muito além do óbvio. Acha, por exemplo, que o Brasil não pode conviver com 20 milhões de analfabetos, cifra que denuncia uma República de 114 anos ainda inconclusa. "É muita gente que não sabe ler na bandeira as palavras 'Ordem e Progresso'; faz lembrar os republicanos que, ao inscreverem o lema, consideraram que faziam uma bandeira para todos. Na verdade, só 30% dos brasileiros, naquele fim de século 19, sabiam ler a inscrição". Para Cristovam, o Brasil continua a viver, 114 anos depois da República, o mesmo dilema: "Ou o Brasil muda a bandeira ou alfabetiza 20 milhões de brasileiros".

O ministro agarrou-se à bandeira da alfabetização porque, como ele mesmo confessa, no ensino fundamental e médio, e até mesmo no de nível superior, por causa da autonomia parcial das universidades, tudo o que ele pode ser é um "inspirador" de ações. A outra bandeira, que ele discute com empolgação, é a da boa economia política. Cristovam vivencia convicta e estoicamente a camisa-de-força do fiscalismo do ministro Palocci, mas é o servidor público da Esplanada que tem na cabeça e na ponta do lápis a "fase dois" da educação e das políticas sociais em geral.

O bom leitor vai notar o sincero desinteresse do ministro por críticas e intrigas ministeriais, tanto quando notará a denúncia da excessiva preocupação dos políticos do PT com a taxa de juros, em vez de se importarem com a taxa de analfabetismo, e a certeza de que vivemos o tempo de uma grande perplexidade, a de que "o crescimento econômico não reduz a pobreza". É por isso que Cristovam quer mais de tudo, mas não encara a ortodoxia da equipe econômica como inimiga de nada. "A luta contra a pobreza está no Orçamento, não na política econômica, que tem pouco a ver com a redução da pobreza, mas muito a ver com o aumento da riqueza." Se não houvesse nenhum outro, com certeza, há um político maiúsculo na equipe do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
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Primeira Leitura: O sr. foi reitor de uma das maiores universidades públicas do país, a UnB (Universidade de Brasília), o que equivale a governar muitos dos municípios, foi governador do Distrito Federal, trabalhou em organismos internacionais envolvidos com políticas públicas e agora dirige a educação. Apesar de toda essa experiência, o que foi que mais o impressionou ao desembarcar no Ministério da Educação? O que mais o surpreendeu negativamente?

Cristovam Buarque: O baque imediato a gente sente quando não tem como fazer o que quer porque as escolas não são do ministério. O Brasil tem cerca de 180 mil escolas, e, desse total, são realmente nossas [do Ministério da Educação] uma escola para surdos-mudos, uma escola para cegos [o Instituto Benjamin Constant, no Rio] e o Colégio Pedro 2o [Rio]. Além disso, há as escolas técnicas e os chamados colégios de aplicação das universidades. Podemos dizer que temos também os colégios militares. Ao todo, são 202 escolas federais entre as 180 mil, e, mesmo assim, cada uma delas com sua independência. As demais pertencem aos Estados e municípios, que fazem realmente a educação do país. Há 52 universidades federais, que são autônomas, e não podemos determinar o que elas devem fazer. Este é o baque: o Ministério da Educação é apenas um órgão de inspiração.

Mas tem o poder do dinheiro, do repasse dos recursos...

Engano seu. Não é o MEC que financia a educação básica no Brasil. Hoje, varia um pouco de ano para ano, mas nós gastamos cerca de R$ 66 bilhões com a educação. Desse total, R$ 18 bilhões são da União, mas veja como esse dinheiro é investido: R$ 3 bilhões são para pagar inativos, R$ 10 bilhões vão para as universidades, e sobram cerca de R$ 5 bilhões, que é a contribuição do MEC à educação básica sob a forma de distribuição de livros, merenda escolar e Fundef [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério]. Esse é o baque de quem quer fazer, mas não tem as mãos para executar o que deseja. As pessoas dizem que eu brigo muito por recursos. De fato, se a gente quiser mudar a educação brasileira, será preciso aumentar bastante o que se gasta em educação. Atenção: o que se gasta nas três esferas, União, Estados e municípios, pois eu nunca falei em aumentar os gastos só da União. Mas a contribuição da União no bolo total tem de aumentar, pois ela contribuiu pouco para a educação básica na comparação com Estados e municípios.

No caso do Fundef, a participação da União está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal (STF).

É verdade. A União nunca cumpriu a lei do Fundef, que manda investir R$ 799 por criança. O governo Fernando Henrique deixou com menos de R$ 400, nós subimos para R$ 400, mas não chegamos nem a R$ 500. Quatro governadores já entraram na Justiça, e eu disse para um deles, para o governador do Ceará [Lúcio Alcântara, PSDB], que considerava isso o primeiro precatório em defesa das crianças. Até aqui, só se faziam precatórios para pagar servidores. Legalmente, o governo federal pode até encontrar instrumentos que driblem, adiem, o investimento por meio de tecnicalidades, mas os governadores têm razão.

O sr. não parece, apesar de tudo, nem frustrado nem desanimado para tocar adiante a tentativa de resolver os problemas da educação.

Nem um pouco frustrado. Essa é uma realidade que vai permanecer, e eu não pretendo federalizar as escolas, como o México está pensando em fazer. Sou defensor da descentralização. É fato que precisamos ter um diálogo mais constante com os secretários da Educação dos Estados e municípios, e eles nunca serão fortes se nós não aumentarmos a nossa participação financeira na educação.

Mas os governadores estão querendo uma Desvinculação de Receitas dos Estados (DRE) e negociam isso na reforma tributária. O mesmo mecanismo que existe no governo federal, a chamada Desvinculação de Receitas da União (DRU), que autoriza o Ministério da Fazenda a reter e remanejar livremente 20% das receitas, algumas delas constitucionalmente carimbadas.

Discordo radicalmente dessa pretensão. Pelas nossas contas, se a reforma tributária autorizar os Estados a ter uma DRU, o prejuízo, só para a educação, pode chegar a R$ 17 bilhões, dos R$ 66 bilhões que são investidos hoje. Eu acho que nós precisamos investir uns R$ 25 bilhões a mais, por ano, nos próximos 15 anos, rateados entre União, Estados e municípios. Imagine, então, tirar agora uns R$ 17 bilhões. Seria uma tragédia, um sinal não só de que o Brasil quer deixar como está, mas de que aceita até piorar a deseducação que temos. Um sinal contrário ao que outros países fizeram nos últimos 30 anos e deu certo.

O recente relatório da Unesco é eloqüente sobre esse assunto.

O relatório da Unesco [órgão das Nações Unidas para a educação e a cultura] coloca o Brasil nos últimos lugares quanto à avaliação dos nossos alunos. Eu analisei os primeiros daquela lista, e olhe só o que eu vi: três dos países que estão lá na frente, Coréia do Sul, Irlanda e Espanha, eram muito parecidos ou piores, em alguns aspectos, do que o Brasil cinco anos atrás. A Espanha tinha, em 1970, um grau de analfabetismo próximo ao brasileiro. A Irlanda idem.

Qual foi o milagre?

Priorizar a educação. Fizeram um pacto nacional pela educação, acima dos partidos. A educação é um projeto que os governos seguintes têm de continuar para dar certo. De resto, todo projeto importante para a construção de uma nação passa de um governo para outro. A construção da usina hidrelétrica de Itaipu atravessou vários governos. A diferença é que a obra física não pára porque fica visível a interrupção. Obra social você interrompe, raramente se percebe, e só anos mais tarde é que a gente começa a sentir os efeitos. A Irlanda, quando estava à porta de entrada na União Européia, reuniu em um castelo 30 líderes, de todos os partidos e várias representações sociais, para saber o que fazer para que o país virasse de fato um país europeu. Não havia nada predeterminado, era uma discussão absolutamente aberta, mas eles saíram de lá com as três metas básicas de investimento: educação, saúde e ciência e tecnologia. O Brasil tem de fazer um pacto pelo "educacionismo", do mesmo jeito que houve o abolicionismo.

Como é que isso se faz, na prática, no Orçamento de investimentos?

Na hora de fazer o Orçamento, você diz que, em primeiro lugar, vêm as crianças brasileiras, a educação, e elas precisam de xis. Depois, a gente discute quanto e como vai gastar com o resto.

Dirão os bons ortodoxos que, desse jeito, não sobrará dinheiro para mais nada.

Não é verdade. No Brasil, sobra, sim. Aqui é possível fazer a revolução educacional, pagar a dívida e ter o superávit primário.

O sr. sempre me pareceu um sonhador com os pés no chão. É um fanático defensor da estabilidade da moeda, do controle da inflação, mas me parece que não estava preparado para chegar ao Ministério da Educação e ter de conviver com uma camisa-de-força ortodoxa do tamanho do aperto imposto pelo ministro Antonio Palocci (Fazenda), com um superávit que é oficialmente de 4,25% do PIB, mas, na prática, fica entre 5% e 6%, nas médias trimestrais de poupança fiscal.

Em primeiro lugar, eu sempre defendi que, nas atuais condições e por alguns anos, não há outra política econômica a não ser esta política ortodoxa. Não perco tempo a discutir se ela boa ou ruim. Não se esqueça de que cheguei a defender a permanência de Pedro Malan [ministro da Fazenda de FHC] à frente da economia, mesmo em caso de vitória do PT, por mais cem dias no governo. Em 2001, eu já dizia que nem mesmo Malan nem mais cem dias resolveriam. No mundo de hoje, repito, nas atuais condições do país, essa ortodoxia é necessária e única, embora eu não a deseje para sempre. Tem de ser passageira, mas eu não tenho a medida do tempo necessário. Do ponto de vista político, o governo Lula saiu do medo para a esperança. Ele não podia sair da esperança direto para as mudanças; teve de passar pela etapa da confiança. Se o governo Lula não tivesse garantido essa confiança de todos, sobretudo dos que não são amigos, ele não ia fazer as mudanças. O governo Lula é vitorioso do ponto de vista do diálogo e da confiança. Se o superávit é de 4,5% ou 6%, eu lhe confesso que não sei dos detalhes. Mas assumo que tem de ser esse mesmo. Os ministros Palocci e Guido Mantega [Planejamento] estão metidos com esses números, administrando o dia-a-dia dessa conta, e sabem o que é preciso fazer. A minha pergunta não discute esses percentuais. O que eu pergunto é: com esse superávit, é possível fazer o que eu quero fazer? É, sim, desde que não apenas os governos, mas o Brasil inteiro queira fazer, o Congresso, as Assembléias, as Câmaras de Vereadores, as empresas e toda a sociedade organizada queiram fazer. A renda nacional está hoje perto de R$ 1,3 trilhão. O Brasil tem 33% de receita, uns R$ 420 bilhões, tire os R$ 50 bilhões do superávit e uns R$ 40 bilhões da dívida. Há dinheiro para investir nas três esferas. Repito que eu não falo em gastar mais R$ 25 bilhões apenas na esfera federal nem acho que isso tem de ser feito em um ano. Se me derem mais R$ 25 bilhões para gastar no ano que vem, sobrará dinheiro porque não teremos projetos amadurecidos para gastá-lo. Esse aumento é paulatino, é um percurso. Eu nunca pedi mais dinheiro para este ano, estou fazendo tudo com dinheiro do ministério, com o que está previsto no Orçamento.

E nós próximos anos? O arrocho do ministro Palocci vai continuar!

Para o próximo ano, União, Estados e municípios deveriam definir já um aumento substancial. Ir subindo um pouco a cada ano para chegar a 7% do PIB, que é o que o Plano Nacional de Educação aprovou há alguns anos e o presidente Fernando Henrique Cardoso vetou. E o PT sempre disse que era contra o veto. Feitas as contas, é claro que há o dinheiro.

E aqui vem outra pergunta: politicamente, haverá força suficiente para tirar de alguns e colocar na educação? Haverá? Tirar de quem?

Quando chegar o momento, eu estou disposto a dizer, a participar dessa discussão como ministro e como militante da educação.

O PT, no governo, perdeu o ardor de militante?

Como ministro, nós temos de ter a responsabilidade e a competência, mas temos de ter, também, a sensibilidade e a combatividade de militante. Do equilíbrio dessas quatro coisas é que se vê se o sujeito é um visionário, um estadista ou um provocador. Nunca devemos fazer nada sem saber se é ou não possível politicamente. Se não é, eu não me sinto irritado, angustiado, desesperado; acho apenas que ainda não chegou o momento. O que eu não vou é deixar de lembrar que educação não é custo, é investimento. A campanha de erradicação do analfabetismo em que eu envolvi o ministério custará R$ 1,5 bilhão, em quatro anos, se não conseguirmos nenhum tipo de ajuda voluntária. Todos os estudos mostram que a alfabetização dessa população gera um aumento de R$ 5 bilhões na renda nacional por ano. Uma pessoa alfabetizada de condições sociais iguais a uma analfabeta tem uma renda 60% maior.

O sr. quis puxar alguns programas sociais, como o Fome Zero, para o seu ministério. Por quê?

Quando você junta os programas com a educação, eles resolvem mais de um problema ao mesmo tempo. Igual ao encontro de duas solidões, desde que alguém pague o sorvete, a cervejinha ou a Coca-Cola. Quando dois solitários se encontram, resolvem-se dois problemas ao mesmo tempo. Há uma série de problemas na educação em que o dinheiro não é apenas para a educação, mas para algo mais. Quando você dá uma bolsa-escola, você dá dinheiro e exige escola, o que ataca dois problemas, renda e educação. O vale-alimentação também é uma solução para resolver o problema da fome, mas é preciso deixar claro que o país precisa de dois tipos de programas: claramente assistenciais e claramente abolicionistas. Educar é abolição. Assistir é ética, é decência, mas não é abolição. O meu problema é achar que o Brasil se preocupa mais com assistência do que com a abolição, como se houvesse uma crença na incapacidade de as pessoas deixarem a pobreza. O gasto em educação tem outra vantagem, pelo fato de ele ser menor do que se imagina. O grande gasto com educação é com o salário do professor. E salário, quando o Estado paga R$ 100, R$ 30, volta sob a forma da carga fiscal que todos têm de pagar. Esse dinheiro circula, e é aí que está a grande novidade que o nosso governo pode oferecer: é a política que dinamize a economia por meio de gastos públicos e que, ao mesmo tempo, resolva problemas sociais. Anos atrás, eu chamava isso de keynesianismo social ou keynesianismo tropical. No keynesianismo, o Estado gasta para provocar demanda e a economia voltar a crescer. No nosso caso, o Estado deve gastar para criar demanda nas mãos de pessoas que produzem o que de concreto elas precisam para sair da pobreza.

Isso representaria um salto na ideologia econômica vigente.

A meu ver, o grande salto ideológico do nosso governo seria inventar essa economia ligada ao social e com uma dose boa de consciência em relação ao meio ambiente. Tudo isso - atenção - sem gerar inflação. Se fizermos isso, inventaremos o "lulismo", o que ainda não existe. O Lula representa uma enorme esperança, mas sem nome. Quando Mao representava essa esperança, ela tinha nome. Lênin, também. Quando Roosevelt representou isso, chamava-se New Deal.

Ministro, não consigo imaginar a equipe econômica propensa a aceitar um keynesianismo sociotropical, um lulismo, o que quer que seja.

Vamos ser realistas. Nós temos de ter no governo uma retaguarda de guarda-livros. Eu já dizia, no tempo do ministro Pedro Malan [governo FHC], e repito: na hora de escolher o ministro da Fazenda, tem de submeter os candidatos a um exame médico para saber se têm ou não glândulas lacrimais. Quem tem de chorar de noite é o ministro da Educação, da Saúde, o presidente da República. O papel do ministro da Fazenda, e ainda mais dos seus assessores, é o de ser duro, não deixar gastar. O papel dos ministros da área social é mostrar que é preciso gastar. O ruim é que a esquerda e até ministros do regime militar brasileiro sempre andaram na contramão. Os ministros da área econômica do regime militar foram os que mais gastaram, e havia o ministro da Educação que estava ali para não gastar. Aqueles ministros assumiam a Educação para dizer que, em vez de gastar no ensino, tinha de poupar para gastar em Itaipu. Eles eram os protetores do cofre, e os da Fazenda, os esbanjadores do dinheiro. Temos de ter ministros da Fazenda que poupem. Não é uma questão de austeridade, porque o ministro da Educação também deve ser austero. Posso até me irritar quando não consigo recursos, mas tenho de respeitar porque o papel deles é esse. O presidente da República é que é o árbitro disso tudo, dentro do realismo político. A abolição levou 70 anos entre o debate e a execução. A educação não deve esperar, julgo eu, nem uma década.

Onde mora o perigo da espera prolongada?
Uma parcela da população brasileira está se educando tão rapidamente e a outra ficando tão para trás, que elas, em breve, se desconhecerão. Deixará de haver uma solidariedade nacional - já está diminuindo -, deixará de haver um entendimento nacional porque elas falarão línguas diferentes. Em dez anos, os meninos ricos do Brasil estarão à beira de implantar chips na cabeça, enquanto o resto da população estudará em escolas degradadas e de péssima qualidade. Quem quiser ver o futuro de um país deve olhar as escolas públicas do presente. O Brasil não pode esperar mais dez anos para começar a construir o futuro, e a nova teoria econômica não deve surgir dos que controlam o dinheiro. Isso seria o mesmo que esperar que a estratégia de uma indústria saísse da cabeça do guarda-livros, do contador.

O governo Lula não lhe parece um deserto de idéias e formulação de políticas públicas?

Talvez o maior problema seja o fato de ter tantas que acaba não tendo uma. Nós chegamos ao governo no momento de uma crise ideológica no mundo inteiro, um momento de perplexidades gerais. Isso se reflete no Brasil com um agravante: a idéia ainda vigente de que o social é conseqüência do econômico. O maior problema não é quem está na Fazenda, o problema não é o ministro Palocci e seus assessores. Nós estamos no tempo em que a realidade mostra que o crescimento econômico não reduz a pobreza; e estamos, também, no tempo ideológico em que ainda vemos o mundo como se a redução da pobreza viesse do aumento da riqueza. O que acaba com a pobreza não é botar um pouquinho mais de dinheiro no bolso de alguém - isso só acontece se o pobre ganhar na loteria. O que tira da pobreza é mais escola, mais água potável, mais esgoto, mais saneamento, mais transporte público e dinheiro para que você possa andar nele, é poder comer, é ter mais atendimento básico de saúde. O que tira da pobreza são as políticas sociais, e para isso é preciso ter uma boa retaguarda econômica. A luta contra a pobreza está no Orçamento, não na política econômica, que tem pouco a ver com a redução da pobreza, mas muito a ver com o aumento da riqueza. O Brasil precisa aumentar a riqueza, mas que ninguém se iluda com o fato de que sem política social essa riqueza acabe com a pobreza.

Isso existe em algum lugar do mundo de hoje?

Fui visitar um Estado da Índia chamado Kerala, no extremo sul do país. A renda per capita é igual à da Índia, baixa, mas a mortalidade infantil é igual à da Europa, não há analfabetos, a criança termina o ensino médio. É o resultado de 30 anos de política social. O grande desafio é encarar essa perplexidade, acabar com todo o fingimento em que nós vivemos em relação a essa vinculação do social ao econômico. Estive na reunião do diretório nacional do partido, em São Paulo [12-13 de julho], e disse que me senti como se tivesse participado de um encontro de economistas. Só se falou de taxa de juros. Ninguém falou de taxa de analfabetismo. Alguém me disse que a taxa de analfabetismo decorre da alta taxa de juros, que impede o crescimento. Não concordo com isso. Afinal, as maiores taxas de crescimento econômico não diminuíram as taxas de analfabetismo.

Podemos esperar diferenças em relação a todas as convicções aqui expressas no Orçamento de 2004, o primeiro do governo Lula?

O Orçamento do ano que vem será o reflexo de duas forças: a vontade do governo e os limites das forças políticas. Quando sair o Orçamento de 2004, a gente vai fazer duas perguntas: o governo quis mudar? O governo teve força para mudar? Afinal, ele pode querer mudar e não ter força para fazê-lo. Como também pode ter força para mudar e não querer. E pode, ainda, ter força e vontade de mudar. O social não se faz em um ano ou um mandato. Educação dá resultados em 15, 20 anos. Eu trabalho com horizonte de 15 anos e fico planejando para 2022, me perguntando onde é que a gente vai estar no segundo centenário da independência do Brasil.

Levando-se em conta o que o sr. viu e ouviu na reunião do diretório nacional do PT, onde só se falou de taxas de juros e nada de taxa de analfabetismo, o sr. não acha o seu partido convertido à ortodoxia econômica?

Depende. Os sindicatos estão preocupados com salário, crescimento econômico e taxa de juros. Mas eu lhe garanto que o presidente Lula tem preocupação com o social. Percebo isso em toda conversa que tenho com ele. A questão é saber se está no momento de ter a força para fazer a inflexão, o que depende do jogo democrático. O lobby no Brasil usa gravata, calça sapato engraxado e tem a dentição completa. Não tem lobby de pé descalço e banguela. A discussão do Orçamento passa por aí: temos de ter superávit, pagar a dívida, cumprir os acordos, manter a estabilidade e atender os lobbies que se expressam no Parlamento.

Como é que isso se expressa no Ministério da Educação?

Não tenho o número exato, mas garanto que não menos de 80% do meu tempo é gasto com pessoas que vêm pedir por universidades. As pessoas pedem mais vagas para alunos que não passaram no vestibular do que mais verbas para os alunos que não terminam o ensino médio.

Em um país com um governo de ambições cada vez mais modestas, o sr. continua sendo um homem de ambições desvairadas.

Que país é este em que querer alfabetizar todo mundo é uma ambição desvairada? Somos um país ambicioso para construir e enviar lá para cima satélites, fazer excelentes aeroportos, ter as maiores hidrelétricas e até boas universidades, pois, se você olhar com atenção, universidades como a UnB, a Unicamp e a USP estão fora da realidade modesta do país. Nada disso é desvairado, não me incomoda a acusação de megalômano, mas me pergunto sempre sobre a origem da modéstia em relação a tudo o que tem a ver com a educação básica e a política social em geral. Eu acredito que Lula quer deixar a marca dele neste país e comunga do bom desvario.

Qual é o tamanho da tragédia da qualidade do ensino brasileiro?

Em primeiro lugar, é um fingimento dizer que estamos colocando todas as crianças na escola. Escola ruim não é escola; é um depósito de crianças por um certo período de tempo. Mesmo em relação à quantidade [97%], temos de ser absolutistas. Ou estão todos na escola ou nós praticamos uma imoralidade. Temos de garantir o ciclo de matrícula e permanência na escola a todos. Hoje existem cerca de 5,5 milhões de alunos na primeira série do primeiro grau do ensino fundamental, mas só há 1,8 milhão na terceira série do ensino médio. É claro que a quantidade nunca será a mesma nas duas séries, mas nós convivemos com um vergonhoso fosso. E temos o problema da qualidade, que nunca será superada enquanto tivermos professores ganhando R$ 530 em média. E vem o círculo vicioso: o governo finge que paga bem, o professor, mal formado e desmotivado, finge que ensina, e o aluno finge que aprende.

Que medida radical o sr. adotaria na educação para enfrentar esse círculo vicioso?
Se fosse obrigado a escolher uma única medida, eu daria um radical aumento de salário aos professores, mas vinculado à obrigação de esses mesmos professores estudarem e se aperfeiçoarem sistematicamente. Mas o Ministério da Educação tem limites nessa proposição porque os professores não são funcionários do governo federal.

A universidade pública e seu financiamento é um problema que o governo FHC não enfrentou. Por onde o sr. vai?

É absurdo que os filhos dos que podem pagar freqüentem a universidade pública apenas para subir na escala social. Mas, se eles estão lá porque o país precisa desses profissionais de nível superior, nada de errado com o fato de que o Estado financie isso. Porque o país precisa de engenheiros tanto quanto precisa de militares e diplomatas, o Estado sustenta o Instituto Rio Branco, a academia militar e a universidade pública. O problema é que a universidade exibe para a população uma imagem de que serve pouco ao país e à sociedade, mas serve bem à promoção social dos seus alunos. O problema maior, portanto, não é o fato de que o rico não pague, mas o fato de que a elite que entra nela aprende a servir a poucos, à mesma elite de onde vem. Paralelamente a esse problema estrutural, o que eu defendo é que se discutam cada vez mais formas alternativas de financiar a universidade pública. E eu defendi que se discutisse um projeto do ex-deputado Padre Roque [PT-PR], que propunha cobrar um taxa dos ex-alunos que ganhassem mais de R$ 30 mil/ano. A questão não é o governo diminuir suas responsabilidades para com a universidade pública, mas exigir mais da universidade e, claro, discutir as formas de sustentar financeiramente essas exigências. O Estado precisa dizer o que quer da universidade. Com medo de enfrentar a universidade, o Estado se alienou e não disse qual é, por exemplo, o papel das universidades brasileiras na alfabetização. O pior é que há universidades e unidades federais de ensino com funcionários analfabetos e sem preocupação em alfabetizar esses servidores, que não são terceirizados, são contratados do Estado. Como é que uma cidade como Alcântara [MA], de onde o país lança foguetes e onde constrói uma plataforma de alta tecnologia para desenvolver o projeto espacial brasileiro, tem 5 mil analfabetos, metade da população adulta do município? Como é que isso pode coexistir?

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