Friday, April 06, 2007

CONVERSA - Nelson Pereira dos Santos

Nelson Pereira dos Santos: Cinema com arte e indignação social
Eleito para a Academia Brasileira de Letras, cineasta acaba de lançar Brasília 18%, filme em que mais uma vez ilumina aspectos nefandos da identidade nacional

Por Ricardo Paiva

Nelson Pereira dos Santos é um dos maiores e mais importantes cineastas do Brasil em todos os tempos. O autor de Rio 40 Graus (1955) e Vidas Secas (1963), que sofreu proibições da ditadura militar e foi um dos inspiradores e precursores do Cinema Novo, acaba de ser eleito para a Academia Brasileira de Letras. Advogado que nunca exerceu o Direito, conhecido pelo intenso amor pelos livros, acaba de lançar Brasília 18%, seu mais recente filme, em que mais uma vez ilumina aspectos nefandos da identidade nacional.
Sua obra vai de retratos contundentes como Memórias do Cárcere (1984), adaptação das memórias de Graciliano Ramos sob a ditadura Vargas, à ousadia de Como Era Gostoso o meu Francês, passando por estudos sobre o misticismo, a religiosidade, a cultura afro-brasileira e a marginalidade em Amuleto de Ogum (1974). Foi também o cineasta do libelo contra o preconceito religioso e a favor da miscigenação, em Tenda dos Milagres (1977) da obra de Jorge Amado, adaptou também A Terceira Margem do Rio (1994), de Guimarães Rosa, e é, hoje, o mais profícuo diretor a aproximar literatura, história, antropologia e formação da identidade brasileira com a sétima arte. Também realizou uma minissérie sobre Gilberto Freyre de Casa Grande & Senzala (2001) e um documentário sobre Sérgio Buarque de Hollanda e seu Raízes do Brasil (2004).

Sua eleição para a Academia Brasileira de Letras foi recebida entre os artistas e intelectuais como reconhecimento a quem aproximou como nenhum outro cineasta a literatura do cinema brasileiro. Que outros aspectos o senhor vê na eleição?
A eleição, sem dúvida, representa um reconhecimento a uma forma elevada de manifestação cultural brasileira: o cinema nacional. É uma distinção a todo o Cinema Novo e todo o cinema brasileiro que se faz e ainda se fará. Eu vejo o fato com gratidão imensa: a eleição não é só um reconhecimento a meu trabalho, mas a todos esses heróis do cinema nacional, fundamental na análise de nossa formação.

O cinema é tão eficaz quanto a literatura nos estudos e análises da identidade de uma nação?
O cinema e a literatura são coisas diferentes, mas o cinema narrativo, particularmente nosso Cinema Novo e muito de nossa ficção, retratou nos seus limites cada maturação sociológica, cultural, política e antropológica da identidade nacional com muito vigor. Como os mitos retrabalhados em muitas obras e presentes diretamente na formação de nosso povo: o patriarcado, o mandonismo, a miscigenação, em material de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Roberto da Matta e Euclides da Cunha. Documentários de gente da estirpe de um Jean Rouch são fecundos estudos sociais e antropológicos feitos em cinema.

Da religião e estudo da miscigenação do povo em Amuleto de Ogum e Tenda dos Milagres à democracia racial de Casa Grande & Senzala até o caráter cultural assimilacionista de Darcy Ribeiro, os tópicos tratam da identidade do povo brasileiro. É uma obsessão que o levou a que conclusões?
No bojo do conhecimento adquirido com Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Hollanda, Raymundo Faoro, Roberto da Matta e com os estudiosos, acadêmicos e a Universidade, o cinema fez uma análise metafórica do Brasil, do que fomos e seremos dentro do contexto da globalização, do que ainda pode acontecer com o homem brasileiro. A corrupção, como abordo em Brasília 18%, meu filme recente, são temas que estão aí e vem se repetindo ao longo da história. O Brasil ainda está em formação, são vários processos e desacelerações, vitórias, derrotas. Ainda temos muito que aprender dentro desses novos processos históricos.

Quais outras obras literárias são caras ao senhor e que julga merecedoras de serem adaptadas para o cinema?
Uma de sua terra, A Pedra do Reino, do Ariano Suassuna, que o próprio Glauber louvava muito e eu acho que há muito merece. É um livro fundamental. Mas, isso já se resolveu; já soube que o Luiz Fernando Carvalho vai adaptar o livro para filme.

No seu entender, qual o legado do Cinema Novo?
A ebulição do Cinema Novo veio com uma carga genial de talentos, mas eu tinha quase cinco filmes realizados. Nós, eu, o Joaquim Pedro de Andrade, o Glauber Rocha, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Paulo César Saraceni, tínhamos similaridades e urgência nos temas, mas eu sou um pouco anterior. Nós criamos formas novas de cinema que projetavam visão histórica, denúncia e investigação sobre a crise de valores e a crise social brasileira. Havia uma forma seca e incisiva de filmar, dentro da estética da fome, preconizada pelo Glauber num manifesto. E os temas abordados implicavam na identificação de problemas de nossa cultura social, do povo, dentro de uma visão realista.

Na maturidade, os cineastas ficam atraídos por temas mais universais?
Pela carga histórica, experiência e leitura ficamos, sim, diferentes, e os temas mudam, dentro de uma maior liberdade de criação. Em Brasília 18%, que eu retomava na minha cabeça desde a época do Collor, quando visitei a cidade, foram várias dissonâncias a me remeter à cidade. Há na trama a secretária, o político, o lobby, a corrupção, aquela personagem assassinada pode ser a falência da esquerda, a morte ainda da juventude da política. E nesses temas, flutuam os personagens.

Qual seu próximo projeto?
O meu próximo projeto é sobre Tom Jobim. Depois, quero ter condições de realizar um filme sobre Castro Alves. É um projeto que venho acalentando há muito. Mostra a passagem do poeta por São Paulo e também sua produção e força intelectual.

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