Friday, April 06, 2007

O palco íntimo de Ingmar Bergman e Kierkegaard

Ricardo Paiva


Num trabalho de aproximação de Ingmar Bergman, seu cinema e roteiros com os temas de filosofia de Sören Kierkegaard e o teatro de August Strindberg e Henrik Ibsen, é norte primodial deixar bem claro que Ingmar Bergman adaptou mais de doze peças de texto de Ibsen – incluindo A Doll´s House e Peer Gynt - e mais de vinte de Strindberg – incluindo The Father e Storm Weather . De Strindberg, principalmente, Ingmar Bergman herdou a perspectiva solitária do indivíduo atormentado perante o colossal fluxo dos acontecimentos da vida.
As questões em Bergman surgem quase que por associação direta com o pensamento atormentado – porém em escopo ainda maior – da obra de Kierkegaard, nas dimensões humana, religiosa e ética. E o paralelismo com Strindberg e Ibsen é um corte profundo epistemológico em toda obra bergmaniana, que perpassa a obra desses outros três pensadores e literatos.

Além de nos depararmos com um filósofo relativamente contra o estritamente empírico e mais coadunado com idéias existencialistas vivenciais, quando lemos Kierkegaard podemos argüir um preconceito de que sua metafísica é interiorizada demais, anti-Kantiana em sua metafísica do desejo. É nesse manejo de temas humanos que dá-se a ligação entre Kierkegaard e Bergman, principalmente.

O humanismo flui então absoluto, pela assunção e premissa que ambos levam da concepção filosófica de um homem unidade, que pertencente à seu conjunto dele com ele mesmo e seu real e não seu outro, faz-se só assim completo e inteiro na busca do entendimento de fé ou de vida. Pois, na medida que ele se completa – nunca inteiramente – nessa busca ele perfaz o caminho próprio inquebrantável e precípuo em relação à experiência maior social coletiva.

Alguns filósofos poderiam ser relacionados um pouco com Kierkegaard, como Heidegger e Pascal, mas mesmo assim, Kierkegaard difere essencialmente da maioria das idéias de todos eles, pois seu laboratório era o homem, ele passava por outras questões mas nem perto de avalizar o homem por leis superiores mecânicas e conquistas descobertas científicas da física – por exemplo - ele passou.

Se não é razoável descrever alguém como Kierkegaard como anti-racionalismo, anti-Hegeliano ou anti-Kantiano (dois filósofos que muito admirava e dos quais sofreu influência intelectual), encontramos de sua obra, o seguinte sobre o que lhe distanciou de Hegel e seu pensamento oposto:

“Ser idealista de imaginação não é nada difícil, mas ter que ‘existir’ como idealista é um labor de toda a vida e um labor fadigoso em extremo, pois que a existência constitui justamente o obstáculo à mão. Expressar existindo o que se compreendeu por si mesmo, nada tem de cômico; mas compreendê-lo todo, exceto a si mesmo, é muito cômico” [1]

Sob a égide de construção racional de valores universais – ainda que não universalizantes, pois valores em formação e teoria – de filosofia coletiva comum, depreendemos que a essa visão Kantiana com razão se opõem Kierkegaard e o cinema de Bergman. Pois, de fato que há de mais irrealizável do que a unificação da coletividade em pensamentos e conclusões ao invés da busca da percepção através da experiência individual?

É, ao mesmo tempo, mais caótico acreditar nessa construção humanista cristã que concebe o indivíduo como ente inicial que impulsiona as reais leis comportamentais, religiosas e éticas da vida. Porém, conhecedores dos limites e supressões existenciais humanas, é mais compreensível que o indivíduo – na solidão infinita de Strindberg – realize sua própria extensão rumo ao sentido de fé e vida.

O ‘’Onde está Deus’’ de Dostoievsky transmuta-se em o ‘’’Quem é Deus?’’ de Kierkegaard. Podemos por toda obra de Bergman encontrar personagens em que afloram caminhos e pensamentos até ateístas do cineasta sueco, mas ao longo de toda sua vida e formação lutherana rígida familiar, Bergman parece nunca ter se dissociado de uma crença em Deus.

Da mesma forma que Kierkegaard questiona a igreja e a religiosidade, Bergman o faz – principalmente em Antonius Block em O Sétimo Selo – mais identificado com a idéia humanista que os defeitos do homem e sua eterna tormenta são o seu inferno e que realmente há um Deus ante o temor à morte e o temor à esse próprio Deus.

Nesse terreno, é que surge toda perplexidade e contratempo na vida do homem de Strindberg e dos relacionamentos de Ibsen, estes realçados como influências em Bergman. A Dialética do Desconhecido, como citam alguns sobre aspectos da obra de Kierkegaard são nortes de seu trabalho que, em primeiro momento, podiam livrar suas exegeses de maior consistência teórica.

Mas, a fábrica de Kierkegaard – usando um termo propositalmente pouco usual e adequado – é o homem quase como instituição. E nessa tarefa, o que é individual, se torna menos perceptível e mais arriscado para se avaliar.

Se nos remetermos a Kierkegaard na obra de Bergman e também à Ibsen e Strindberg, em seus moldes teatrais angustiados e de conflito humano, a Trilogia do Silêncio é uma notável comparação de quanto à medida que Bergman desenvolve esses filmes, mais ele ratifica Kierkegaard e seu olhar espectral indiscreto do homem.

Enquanto a busca de Kierkegaard é mais orientada e menos aflitiva, a de Berman por suas imagens e seu conhecido pessimismo strindbergmaniano (termo da estudiosa sueca Linda Haverty Hugg) é realçado pelo belo trabalho de encenação e técnica fotográfica de Sven Nkyvist a retratar os estados d´alma.

Talvez mais que em outras obras como Persona, Morangos Silvestres ou Sétimo Selo, a acurada análise de Bergman atinja índices mais próximos da filosofia existencialista humanista ulterior de Kierkegaard – mais complexa que Sartre – pois centraliza-se mais do que nunca nas ações dos personagens principais dos filmes Através do Espelho, Luz de Inverno e O Silêncio. O homem seria o “motif” fulcral de Kierkegaard.

O “Cinema is the face” de Ingmar Bergman atende necessariamente e fundamentalmente essa concepção de câmera do close up, tão presente em sua obra ou, por exemplo, na de Carl Dreyer, de Ordet e La Passion de Jeane D´Arc.

Essa perspectiva sensorial de que o diretor tinha de não permitir a respiração aliviada para o ator de uma câmera que se dispusesse a muitos metros, torna também recorrente em sua obra como era recorrente a linguagem teatral de seus filmes. Junto a outro famoso pensamento do diretor que dizia

“Para mim, o cinema é antes de tudo uma variação do teatro. Ninguém irá me tirar da idéia de que o cinema é um teatro com regras mais flexíveis” [2]

Essas concepções ligam-se diretamente a essa concepção do temor, a angústia, o “Dread” ante o possível Deus; angústia e ansiedade abordadas vastamente por Kierkegaard.

Ao mesmo tempo em que o desatino da opressão submetida à Bergman quando criança possa tê-lo feito um pessimista e possível ateu em potencial, é talvez mais ponderado pensarmos que todo esse aparato angustiado familiar anti-patriarcal e anti-clerical do teatro influenciado por Strindberg e Ibsen e a incessante busca existencial com olhar e viés humanista de Kierkegaard expressos na sua arte, sejam indícios cruciais de sua fé angustiada ou espanto e dúvida, base do seu trabalho e sua influência de Kierkegaard.

“Nós temos um grande vazio, a ilusão perdida de Deus, chame isso como quiser, uma necessidade de segurança intelectual que venha compensar todas as de segurança material, social. É esse vazio e tudo o que os homens inventam para preenchê-lo que eu descrevo em meus filmes” [3]

O vazio que aparece em Ingrid Thulin e Gunnar Ljobström, as duas irmãs de O Silêncio, do vazio de Liv Ullman e Ingrid Thulin outras duas irmãs em Gritos e Sussuros ou de Liv Ullman com Ingrid Bergman, mãe e filha em Sonata de Outono.

Do calor de destruição provocado pela impossibilidade de comunicação e realização de Erland Josephson e Liv Ullman em Cenas de um Casamento até a mudez de Elizabeth Vogler e a explosão de Alma em Persona, o teatro e os dramas familiares exercidos nos temas e na forma de filmar se aproximam de Strindberg, Ibsen.

E filosoficamente, essa construção de cinema teatral de Bergman trata da impossiblidade da descoberta sem a definição final da busca. O que Kierkegaard analisava era a impossibilidade dos meios e a irreversível necessidade de experiências e existências no alcance da luz e descoberta da existência e do encontro de fé, com Deus.

As condições da existência de Kierkegaard eram: o compromisso e risco da escolha, a subjetividade, a angústia e o desespero. Esses temas candentes estão em todas as almas femininas – O Deus feminino de Kierkegaard, resultado de impossibilidades e sensibilidades – são desenvolvidos por Ingmar Bergman à luz de teatro, cinema em close e com scenario realmente mais simples que um Visconti em seu planejamento em Noites Brancas, por exemplo, porém mais belo que.

“Como homem de teatro, Bergman é instado a dirigir peças de outros autores. Mas como homem de cinema, ele tem que se manter no controle do cenario e ser o mestre no processo. Ao contrário de Bresson ou Visconti, que criam um ponto de partida a partir de esquemas totalmente inventivos, Bergman cria suas aventuras e personagens transcendentes fora do nada [4]”.

Em Bergman, o ser vai ser o esteio e o espelho – presente em Bergman como Deus, morte, fé, sexualidade, família – simbólico de toda a agitação da natureza que compreende o humano e o divino e suas interpenetrações. “O indivíduo, a existência e o agir é que são a verdade”, segundo Kierkegaard. E existir consciente da existência dessa existência é a verdade, infelizmente, “existir é viver a angústia e o desespero”[5], no cerne do homem e o que o define: a experiência pessoal, angústia, dor, busca da fé, amor e as escolhas.

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