Friday, April 06, 2007

Mário Peixoto e o cinema-unidade poético da proto-imagem

A montagem e a direção lírica, griffithiana e universal de Limite

Ricardo Paiva


O cinema de Mário Peixoto, portanto suas diversas idéias e concepções concretizadas em seu único e mítico Limite (1931), está aferrado à idéia griffithiana de montagem, com as imagens sendo soberanas em disposição da narrativa, usadas por exemplo de forma magistral e revolucionária por D.W. Griffith em O Nascimento de Uma Nação (1917) e Intolerância (1919), onde D.W.Griffith inventava o cinema como linguagem desenvolvida para ser capaz de associar racional e logicamente uma série de imagens e compor nesse esquema uma narrativa.

O prólogo – uma seqüência fora da diegese do filme – estrutura-se em torno de uma imagem que é a fundamental de Limite: a mulher e as mãos algemadas. Imagem elementar, originária, - protéica lenta, de imagens longas, ligadas por fusões, estruturadas segundo um princípio não-narrativo”, como diz o físico, filósofo e crítico d ecinema gaúcho Saulo Pereira de Mello.Nessa circularidade com unicidade, reside toda dificuldade de fazer um filme como Limite, universal e lírico, sem abdicar de rigor técnico – descontadas algumas limitações da época – para dramatizar e facilitar sua exposição.

O maior risco de Limite era que ainda dessa exigência de unicidade e capricho de imagens ligando-se umas às outras, o filme partia de uma história simples, em relação à ambientação e tamanho, reduzindo a margem de manipulação – pretendia-se mínima – em favorecimento de uma meticulosa encenação, direção de atores e trabalho de câmera refinado, num lirismo mais angustiado pois existencialista como Bergman afetos à Kierkegaard. São tessituras de imagens de uma busca espelho de uma alma de poeta que chegou a publicar o também mítico O Inútil de Cada Um (de primeira edição subestimada de 1955) por um cinema lírico e diferente do cinema griffithiano.

Na memória que fica ao vermos Limite, todas as cenas e angulações de câmera, todo o detalhado trabalho na direção de atores e a memória de imagens ficam como num relicário de beleza de várias unidades. Isto, mais adiante, delineado ainda por fios narrativos, mas fios narrativos menos diegéticos que o cinema de ouro Hollywoodiano, vai ser retomado pelo cinema moderno. E o cinema, especialmente, de silêncios.

Além de todo detalhamento de imagem, em simbologias de natureza, formas, contenção, angústia, Limite expõe duas narrativas que se entrecruzam em flashbacks totalmente articulados: o mundo da cena das ações no interior dos personagens – acontecendo no barco – e outro no interior dos personagens, este na terra contando o passado de onde vieram os personagens de Olga Breno, Raul Schnoor e Taciana Rei, como queria Mário Peixoto. O que nos leva a conclusão que por ter sido feito em uma noite e sendo simples, Limite nunca foi fácil, nasceu apenas de autor que tem impulsos geniais de artista, como explica Saulo Pereira de Mello.

A narrativa interior dos personagens também está impelida pela natureza que lhe dá o Limite, esse tema é escopo de Mário Peixoto, do seu filme e seu motif. O diretor, com sua estrutura pequena de roteiro – por tratar-se de uma pequena história em pequeno aspectro à primeira vista – torna universal seu tema de contenção de homem pela limitação de sua fraca natureza perante a força universal. É nesse contexto que as paisagens e a simbologia do mar, do penhasco que uma personagem vislumbra em crise existencial, a visão de urubus voando a serra onde estão ilhados numa morte à espreita, que Limite decerra sobre os personagens a senda da Impossibilidade.

A montagem de Limite é outro fator tão genial quanto a fotografia inovadora e bela de Edgard Brazil. Ela, a montagem, aqui tem que ser entendida à luz de expressionistas alemães, mas não sofre dos diapasões nos soviéticos representados por exemplo num Encouraçado Potemkim ou em Pudóvkin, Dojvenko. As delicadas unidades circulares são radicalmente pensadas – ou por impulso às vezes – como acertadas peças na sinfonia maior do filme. Essa apresentação e formatação são sempre recorrentes à proto-imagem, o que dá dimensão única ao tipo de cinema que já em 1931 o genial Mário Peixoto de dois projetos míticos e tantos outro abortados, emulava sob três égides temáticos: o tempo, a impossibilidade dos limites do homem e a poesia.

Essa apresentação e formatação são sempre recorrentes à proto-imagem de que fala Saulo Pereira de Mello e de que fala Mário Peixoto em seu Escritos Sobre Cinema, organizado por Saulo. Mário após ver a imagem no jornal de uma mulher aflita com expressão desoladora e com mãos que não são delas acorrentadas à algemas, deu o ponto de partida inicial em idéia e também nas imagens do projeto do filme Limite.
Desde a delicadeza de Erik Satie e sua Gynmopedie, que está no começo e repete-se por outras várias cenas do filme, até as imagens parecidas, limtadas pela borda do barco, pela força do mar, pela câmera mais diferente captando o rosto dos personagens, fugindo ao usual outros filmes. Limite, por Saulo Pereira de Mello, se junta a outros filmes mudos que são essenciais para a história do cinema.

Segundo Saulo, a linguagem narrativa, com todo os seus méritos, estancava a imaginação e parte da arte que advinha no cinema mudo de obras que ele destaca: A Terra (Dojvenko, de 1930), O Homem de Aran (Robert Flaherty, 1934). A Linha Geral (Eisenstein, 1929), City Lights (Charles Chaplin, 1931), A Mãe (Pudóvkin, 1926).

Esses filmes não serviam à narrativa do texto, sendo eminentemente cinematográficos, semelhança comum junto com a qualidade exponencial de suas imagens, suas inovações de câmera, em criativos enquadramentos e angulações ou mesmo num close como o de O Homem de Aran.

Mário Peixoto certamente em Londres procurou saber mais sobre Griffith, os expressionistas alemães – podemos reconhecer traços nas formas de abordagem da câmera e sua colocação pegando debaixo ou de outro ângulo mais incomum a expressão dos personagens e a fotografia a captar como uma espécie de sufoco irreal de psicologias. Mas é numa gramática totalmente envolta por inspirações e sentimentos de mundo pessoal ao mesmo tempo em que sentimentos de mundo todo se expressam nas individualidades, que o potencial de Limite torná-lo-ia no maior filme brasileiro jamais feito, sem parâmetros e iguais, como define Cacá Diegues no documentário Onde a Terra Acaba (Sérgio Machado, 2001).

O Mário poeta, escritor e pensador, também era afetado pelo espírito reservado mas sensível e sentimento humanista que vemos tanto transparecer em Limite. No filme, as limitações materiais de barco, mar, homem, paisagem, distanciadas ou não da câmera se remetem em circularidade umas às outras, sem nada ser solto, desde a tesoura e a máquina de costura de Olga a marcar o tempo de sua vida – e vida é angústia – até os gravetos na mão do Homem, ao barco.

No documentário de Sérgio Machado, Onde a Terra Acaba, quando se passa perto de fotografar quem era Mário Peixoto, pouco se encontra na busca de respostas. Mário como grande artista e ao mesmo tempo pessoa reservada e sensível, acaba deixando em Limite e seus livros os traços da personalidade e preocupações e anseios formadores de sua personalidade.

O tempo é outro componente forte sintomático em O Limite, como a Mário Peixoto se referia dizendo em frase conhecida e revelada como conversa com Walter Salles aludida no documentário Onde a Terra Acaba ‘’Cada vez que o relógio e seus ponteiros avançam, aumenta uma unidade e a marcação no relógio diz mais um após olharmos um minuto, porém o que ele quer dizer pe menos um, menos dois...”.

Não só o mar faz do Homem, de Taciana e Olga os náufragos, mas o tempo também esmagam-lhe as possibilidades, pois também é manifestação da natureza – e a mais implacável.

A montagem de Limite é fator tão genial quanto a fotografia terivelmente bela de Edgard Brazil. Ela, a montagem, aqui tem que ser entendida à luz de expressionistas alemães, mas não sofre dos diapasões nos soviéticos representados por exemplo num Encouraçado Potemkim ou em Pudóvkin, Dojvenko. A delicada forma de Limite e suas unidades circulares são radicalmente pensadas – ou por impulso às vezes – como acertadas peças na sinfonia maior do filme.

Cada um dos três grandes flashbacks e jogos de imagem remetidos à memória de onde vieram os três personagens são cuidadosamente articulados na narrativa em seus momentos certos, mas não nos mais fáceis, a manipulação é extremamente habilidosa e mágica, mesmo que racional. O valor de Limite é potencializado por suas imagens separadas, cristalizadas em seu poder estético como quadros sucessivos de ordem lógica que de forma sutil e rigorosa quase se deita sobre a tela.

Esse poder de reter a imagem para o espectador também guardá-la em eternidade pela sua força uma, junto à capacidade de alinhavar todas elas dispostas em um sentido narrativo fílmico com opção pela escolha da imagem por ela mesmo. Como a imagem sobrepujando a ação, utilizada não em função de narrativa como é conhecida, mas em modelo realmente inovador e diferente do seu sucessor cinema narrativo a trabalhar com o estritamente textual (mesmo o textual do cinema mudo da explicação da história, pois Limite é afinal um filme mudo e desses tempos) .

Limite é o que de mais longe o cinema nacional chegou da simplificação, do cinema narrativo industrial, dos filmes lançamentos cinema por cinema, como bem atestou Glauber Rocha sempre em sua crítica ao cinema narrativo sem apelo às imagens trabalhadas e longe de serem poemas. Cinema, como diria Glauber, não é teatro, é arte visual. E o bom cinema e genial cinema como o de Limite, é poesia visual, onde cada imagem silenciosa é repleta de tantas de tantos sentidos.

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