Friday, March 03, 2006

Cinema, Aspirinas e Urubus

Um Cinema preciso, universal e delicado

Ricardo Paiva


O longa-metragem pernambucano Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, selecionado para mostra Un Cert Règard do Festival de Cannes e vencedor da Mostra SP de Cinema Internacional de melhor filme e ator - pela primeira vez em vinte e seis anos do festival e com o prêmio de ator criado especialmente para o João Miguel, que vive Ranulpho - se não vem confirmar a sonhada conquista do público brasileiro pelos cineastas nacionais, aparece como um dos grandes filmes produzidos no Brasil desde a chamada retomada de nossa cinematografia.

É no périplo de Johann (Peter Ketnath) que a história do filme se constrói. Pelas caronas que ele vai dando aos sertanejos que sobem em seu caminhão parecendo sempre que com a companhia de um sentimento de sofrimento, o que deixa o veículo parecer estar com mais uma pessoa à bordo. Em especial, o filme acontece quando o carona é Ranulpho, um amargo nordestino de personalidade diferente do dócil e gentil alemão.

Em sua universalidade, o filme trabalha com temas e histórias pequenas que formatam um filme que justamente assim do retrato conciso e bem focado no local, torna-se universal. Com uma fotografia perfeita e original de Mauro Pinheiro Jr., diretor de fotografia dos elogiados curtas-metragens pernambucanos A História da Eternidade e O Velho e o Mar, o filme fala de amizade, identidades, mas também ao contrário do que ressaltou a crítica fala de impossibilidade, oportunidade e miséria.

O roteiro é do amazonense radicado há anos em Pernambuco Marcelo Gomes, premiado em Brasília e Gramado com seus dois curtas-metragens Maracatu, Maracatus e Clandestina Felicidade, o pernambucano Paulo Caldas e do cearense e parceiro Karim Ainouz, diretor de Madame Satã, roteirizado e com Gomes. O perfil gregário e simples de Marcelo faz desse conhecido espírito de união entre os cineastas e técnicos de cinema pernambucanos algo mais forte neste Cinema, Aspirinas e Urubus.

Para quem vê o filme sob uma ótica estritamente técnica, dados os acertos em fotografia, montagem, direção, atuação e roteiro, escapa que o primeiro sentimento quando se assiste Cinema, Aspirinas e Urubus é de quanto o filme é cinema. O roteiro em sua humanidade e sua simplicidade, não teoriza muito.

A trama apenas consiste da história de um vendedor alemão saído de seu país antes da II Guerra, para viajar o Brasil com lotes de aspirina para vendas bem arquitetadas - paradoxalmente pro lugar e pra época - numa moderna publicidade com projeções de filmetes de cinema para os nordestinos.

O roteiro ainda é mais perspicaz quando entende que o veículo do cinema não dá espaço a nenhum tratado filosófico ou sociológico do país. Ao escolher esse escopo, o roteiro dá conta do recado melhor do que muitos filmes nacionais que caíram nessa armadilha de manipular as emoções e apresentar melodramas sociais ambiciosos.

Com a forma discreta, sutil e elegante de tratar as personagens e a história, sem escapismos e manipulação do público, o trabalho de Marcelo Gomes tece seu próprio ritmo, nunca há aqui bruscas mudanças de ritmo dos poucos conflitos e tramas que apresenta na tela. Mesmo assim e talvez por não explorar o melodrama, na sessão onde o repórter viu o filme um casal saiu com quarenta minutos de projeção, após sussurros de que o filme era muito belo, mas que nunca acontecia reviravolta nem nada de ação entre o alemão e seu carona.

Não há realmente aqui a humanidade fácil, a música belíssima e discreta de Tomaz Alves, da banda pernambucana Profiterolis, bem como as gravações musicais da época que estão na trilha sonora emolduram o tempo passado do filme – II Guerra Mundial – consolidam essa sutileza e coerência conceitual do filme. Pois, sendo obra, tem-se obviamente uma concepção, mas em Cinema, Aspirinas e Urubus ela nunca é facilmente arranjada, trabalho que certamente deve ter-se imiscuído mais ainda na sala de edição.

O maior mérito do filme é a falta de ornamentos narrativos, é captar os momentos fugidios dessa relação entre Ranulpho e Johann, ambos defendidos com excelência por João Miguel e Peter Ketnath. O trabalho de João, premiado no Festival do Rio, também é dessa sensibilidade especial da trama que paira sobre todo o filme de Gomes.

O Sertão é filmado como se não acabasse nunca e, paradoxalmente, sem parecer ter seu lugar no mundo, fora dos acontecimentos realmente importantes das urbes e da vida. Além dessa consonância entre direção e roteiro, Marcelo Gomes parece que fica também com a opção de filmar perto e quase em close sua dupla principal, para seguir cada detalhe e reação de sua dupla de atores principais, impossibilitando que Peter e mais ainda o inspirado João Miguel, mintam sobre suas emoções.

O longa não fica só ali na relação de tensão que logo se dissolve entre os personagens centrais. Através deles, dos personagens e com a elegância de humanizar o sertanejo, a película fala de forma mais eficiente sobre a miséria do que até outras obras mais apelativas.

Johann e Ranulpho estão atentos aos acontecimentos veiculados pelo rádio que os aproximam da Guerra ao mesmo tempo em que estão no fim do mundo, inexoravelmente tragados pelo Sertão. Existem várias outra peles no roteiro – que estão escondidas como o olhar desconfiado do sertanejo para o alemão.

A câmera nunca dá um tom a mais do que a cena precisa, economicamente você parte de um pequeno espectro e consegue chegar mais longe ainda na construção de seus personagens e os seus perfis psicológicos. A vida é que está posta na tela, não parece que há um diretor sempre ali a nos guiar. Uma filosofia que é a do cinema, não dos livros, mas que produz análises do ser humano que também podem ser profundas.


ENTREVISTA – Marcelo Gomes, diretor de Cinema, Aspirinas e Urubus,

O Cinema, Aspirinas e Urubus foi extremamente elogiado e não se tem notícia de nenhuma restrição ao filme entre os grandes críticos de cinema do país. Qual o desafio em relação ao público de um cinema nacional numa indústria em crise, quando sabemos que o maior mercado mundial de cinema, a indústria dos EUA, enfrenta uma perda de 25% de seu público em 2005?

MG - É necessária a formação e educação do público brasileiro. Após os anos 70, com aquela explosão criativa do Cinema Novo e de alguns sucessos de bilheteria, veio o enfraquecimento nos anos 80, com crises econômicas e o decréscimo do público. O caminho é através da educação, da exibição de nossos filmes em universidade, com os estudantes, escolas, com o fomento do Ministério da Cultura, o Minc. É urgente também uma melhor distribuição, existem cinemas em pouquíssimas cidades em Pernambuco. E também é urgente baixar o preço do ingresso. Um brasileiro que ganha o salário de fome tem direito ao cinema, mas a realidade o impede de pagar um bilhete.

O diretor Fernando Meirelles,de Cidade de Deus, parece que já se mostrou interessado em trabalhar com o Mauro Pinheiro, que fez a fotografia do filme. O Cinema, Aspirinas e Urubus prima pela excelência técnica. Qual o diálogo que se estabelece nas escolhas do filme, qual é a relação e conversa com o Mauro na opção por aquele branco solar, meio que Wim Wenders e algo de Profissão Repórter de Michelangelo Antonioni, de um lugar que nunca acaba, onde os personagens parecem isolados do resto do mundo? Quais são suas influências e como se trabalham dentro de um filme?

MG - O diálogo sempre é constante com o Mauro, na concepção buscávamos essa luz branca, iridescente, porque para o alemão que ali chegava, o Nordeste tinha que ser algo novo, com aquela superexposição da luz, ao mesmo tempo não podia ser um céu azul, porque a personagem do Ranulpho, do nordestino, queria sair dali em busca de seus sonhos e longe da seca. Ao mesmo tempo, nas cenas noturnas, retratamos aquele universo dos anos 40, onde não existia quase luz, com uma iluminação que vinha apenas do projetor e da tela onde passam os filmetes sobre Aspirinas que os nordestinos assistem. As influências principais vêm do cinema novo, Glauber, admiro muito o Leo Hirzschman, o Nélson Pereira dos Santos, o Jorge Bodanski e também o neo-realismo italiano e o cinema iraniano. Esse cinema da dificuldade, seco, cabe buscar sua criatividade e linguagem, esse o meu principal desafio. E o cinema é muito recente, uma arte nova, não é como a literatura. Daí, as influências não são totalmente decisivas, o genial é poder sempre reinventar essa forma de arte.

O curta-metragem História da Eternidade, de Camilo Rocha, onde o Mauro também faz a fotografia, outra produção daqui de Pernambuco, abre os créditos com as palavras “Um filme de” e daí elenca toda a equipe, com o nome do diretor aparecendo só pelo meio da lista. Você também é conhecido por gostar do trabalho com sua equipe, tem a imagem de ser uma pessoa bem gregária e simples. O quanto disso acaba melhorando a produção de um filme?

MG - O diálogo sempre existe, o diretor é o catalizador das idéias e impulsiona as criatividades de toda sua equipe. O filme não é meu, a idéia foi minha, a concepção, mas a realização e o filme são de toda a equipe. Ele concebe a gramática e conceito do trabalho, mas toda equipe se inclui nessa construção.

O filme tem uma história afeta ao cinema, No entanto, durante a projeção inteira, as emoções do público não são buscadas, o público não é manipulado seja por trilha sonora fácil ou por retratar sofrimento e só isso do nordestino. Nesse sentido, o humanismo de seu filme é notável. Você concorda que o filme é otimista, através da personagem de Ranulpho, pois quando ao povo é dada oportunidade, ele revela-se capaz . Tem quem discorde e diga que o filme em sua humanidade é pessimista, pois é ingênuo ao crer nos homens e passar longe de política.

MG - Eu concordo que o filme não se prende à política, mas aos personagens. Na USP, eu estive para debater sobre o filme e a discussão era se o filme tinha uma carga de esperança ou não, no seu humanismo. Eu acho que o filme é esperançoso, pois os personagens fogem e não se submetem à sua realidade. É quase existencialista, Sartre. E, mesmo que eles não se redimam da miséria, vão em busca de suas histórias.

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